sexta-feira, 31 de agosto de 2012

CARTEIRA DE SENHORA


DIA 31

Sem carteira a pressão é maior, porque era bem mais fácil encontrar um tema vasculhando aquela coisa sem tino nem fundo. Por isso continuo a vadiagem.

Abalei para o Alentejo. Um Alentejo especial, é certo, arraçado de beirão e ribatejana, mas que assim lhe permitiu herdar o que há de bom (também o mau?) das três Províncias.

Aqui há charnecas, extensas planícies onde se semeava o trigo por entre os sobreiros, mas também há colinas e montes e escarpas, especialmente quando se desce até ao Tejo. Poucos quilómetros em qualquer direcção e de repente já não é xisto, são afloramentos de granito, mais adiante e reaparece o xisto. Uma diversidade de paisagem num tão pequeno espaço, a exemplo do que afinal acontece numa escala maior em Portugal. A constante são os sobreiros, as azinheiras, as oliveiras e, infelizmente cada vez mais, os encalitros e os pinheiros. Há pouca auga, mas também existem oásis.

Muitos urbanos odeiam a vida no campo, especialmente se já vão na terceira geração de cidade e perderam todos os laços, e nós, e memórias. Odeiam os bichos, aranhas (das grandes aos aranhiços, e as suas teias estão incluídas na noção de bicho), formigas, escaravelhos, mosquitos, melgas, abelhas, abelhões, abêsporas, borboletas da noite, que as de dia ainda se toleram por serem bonitinhas, moscas, varejeiras, lagartos, lagartixas, osgas, cobras, morcegos, ratos… Dão gritinhos, chamam por socorro, pouca falta para acharem que devem vir o 112 e os bombeiros.

Já acham graça aos “mémés”, ainda pegam nos borregos ou cabritos ao colo mas depois largam-nos e gritam porque lhes fizeram chichi para cima. Das marrãs têm nojo. Dos bezerros ficam longe, e das vacas ainda mais, que respeitinho é muito bonito e estes já são animais do grande respeito que lhes dá a cornadura.

No entanto, há sempre uma altura da vida em que o urbano quer uma casa no campo, - sempre depois da casa na praia, pois claro - seja por imitação, seja por um qualquer chamamento genuíno. Está cientificamente comprovado que a taxa de sobrevivência de um urbano no campo não é muito elevada, por isso só aguenta uns fins-de-semana por ano.

Este urbano tenta reproduzir no seu cantinho rural exactamente o seu cantinho urbano, mas sem paragem de autocarro. Só que o campo tem manhas, e é preciso saber os truques todos para sobreviver. Aprende-se. Todo um curso de formação especializada. Com tempo e muitos gritinhos.

Não é só com os bichos. Também se aprende que o tempo vive noutro planeta. Aqui não há tempo. Não cabe na cabeça de ninguém dizer aqui que o tempo urge. É uma noção inventada por urbanos. Aqui só há tempo das sementeiras e das colheitas. O resto é paisagem.

Se o nosso urbano, o tal que nunca teve laços com a terra ou já os perdeu, quer contribuir para o desenvolvimento da terra mais próxima do seu novo cantinho rural, procure ver o que tem à sua disposição nessa terra antes de desandar para Lisboa ou Porto.

Se quer um vidro, primeiro tente saber se existe vidraceiro na vila. Não se fie se não houver propaganda à porta, não quer dizer nada. Na própria terra toda a gente sabe onde ficam os vários mesteres: o sapateiro, a oficina de bicicletas, o mecânico de automóveis que já não há, o vidraceiro, o carpinteiro. Não precisam de publicidade. Só a gente de fora não sabe. Vai daí, pergunte. Não se espante se a resposta não sair pronta, ou se indicarem primeiro a cidade mais próxima. Insista, que acabam por se lembrar. Depois, descobrir a porta ou portão exacto já é outra aventura. É fácil perdermo-nos em terras pequenas, fala a experiência. Feitas as descobertas (às vezes vai surpreender-se com a acumulação de mesteres), lembre-se sempre que não há tempo.

Os eventuais comentários, os cochichos, nem se notam quando temos os miminhos. Os produtos da horta oferecidos (eram tantas as alfaces que trouxemose-as), o sapateiro que faz um furo extra na coleira do cão enquanto esperamos com o carro mesmo no meio da rua estreita e não leva nada, as conversas nas lojas (…e a modos que eles lá forem e fizerem isso…), as queixas no centro de saúde que já nem há ao fim-de-semana, a disponibilidade para ajudar…

Quando abalar para Lisboa, irei em lágrimas, porque é aqui que pertenço, é aqui que sou. A carteira nunca vai perceber.

- Atão?

- Qualquer dia avento-a.

Leonor Martins de Carvalho

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

O SAGRADO E O PROFANO EM PLENO VERÃO

O Verão tem, em paralelo, festas sagradas e festas profanas. Há assim a possibilidade de os crentes se divertirem depois de cumpridos os seus deveres religiosos e de os ateus conhecerem — e até sentirem —  o apelo da espiritualidade católica. O sítio onde passo férias é rico em ambos os tipos de celebrações, exemplar no respeito mútuo, e fértil em saudáveis sinergias e sínteses. Ficamos todos a ganhar.

NÃO SE APANHAM MOSCAS COM VINAGRE

Vem-me à cabeça este dito popular a propósito de certos escritos desbragados que leio nas redes sociais. Pensam os seus autores angariar assim pessoas para as suas causas e agremiações. Na realidade perdem dessa forma os poucos seguidores que ainda pudessem ter. 

domingo, 26 de agosto de 2012

DO RITMO BLOGUÍSTICO

Nos blogues, à semelhança dos diários, é suposto escrever-se todos os dias. Contudo, há dias em que nada há a dizer. E, no entanto, essas páginas em branco falam por si. Além do mais, servem a minha muito querida estética minimalista.

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

CARTEIRA DE SENHORA


DIA 30

Como a carteira foi a banhos à socapa e não me deixou pesquisar o seu conteúdo, fiquei por minha conta.

Nesta minha ermitagem (sei que não existe, mas parece que não chegam, as palavras…), não vejo nem leio notícias, não tenho ideia do que se vai passando fora dos meus horizontes, limitadíssimos, é certo, mas ao mesmo tempo infinitos. Vou então divagar, navegando sem destino, ora em alto mar, ora perto da costa, ao sabor dos ventos. Sei que vão ser rotas muito batidas, mas paciência, os déjà vus também têm direito à vida.

O que nos revolta mais hoje em dia?

Será alguns terem-nos roubado e deixado na penúria sem qualquer espécie de remorso?

Será sentirmos que a justiça nos abandonou?

Será viver num mundo em que já não cabem nem a palavra nem a honra substituídas pela mentira e os seus temíveis guarda-costas, a ganância e a ambição?

Será ver a miséria e abandono em que estão a lançar cada vez mais de nós?

Será saber que nos espremem sem dó nem piedade enquanto tudo continua na mesma e ninguém é responsabilizado?

Será porque nos tentam manipular a consciência apontando-nos como culpados sem perdão?

Será porque acreditámos em palavras que não queríamos acreditar serem ocas?

Será por vermos a soberania a fugir, o património devastado, a língua destruída, como coisa corriqueira de somenos importância ou facto consumado?

Será este sistema fechado em si próprio, uma caricatura a que chamam democracia mas em que sempre os mesmos se servem nenhum servindo Portugal?

Como a vida não é um concurso ou uma eleição podemos bem afirmar que é tudo isto que nos angustia e enoja.

Dizem-nos que os partidos existem para representarem as pessoas. Representam? Ou representam-se a eles mesmos, só rodando as personagens após as saídas para lugares de favor a quem favores prestaram ou para reformas que ninguém compreende?

As palavras, nos programas eleitorais, são vãs. Já sabemos há muito que o prometido antes de eleições só coincide com a praxis em milímetros e quase que por mero acaso. Não são novidade os discursos de políticos dizendo uma coisa e, com o maior dos desplantes, exactamente o seu contrário uns meses depois, voltando em seguida à primitiva quando lhes apraz.

Para chegarmos a este ponto (e não é problema só português), deixámos que toda a vida política (e não só) ficasse na mão dos partidos. Lenta e insidiosamente foram tomando conta de tudo, centralizando cada vez mais, para ter a certeza de que nada escapa ao seu controlo, convencendo-nos de que isso é que é democracia, porque votámos neles para nos governarem para nosso bem.

Um ardil tão grande, tão gigantesco, que vai levar anos a desmontar.

Tratam-nos como se fossemos imbecis, uns pobrezinhos que nada percebem das altas esferas da política, umas crianças órfãs, que precisam de tutores para os guiar pelas adversidades da vida. Neste caso, são eles que criam as adversidades, são tutores como nas histórias infantis a puxar à lágrima, que só querem ficar com o dinheiro do órfão e no fim o deixam na miséria.

Quem está a fazer qualquer coisa pelo país são os portugueses, não os governantes ou as oposições. Estão a sofrer como nunca mas continuam a lutar. A classe política não merece o povo que diz representar.

Há pouca gente verdadeiramente livre para falar. Mas os que o são, ouvimos sofregamente, e têm mais sucesso que qualquer político. Ainda não perceberam, os políticos. E têm medo. Medo de perder o controlo, as mordomias, o poder.

E podemos fazer o quê? Que portas nos deixaram abertas? Só vejo nesgas e buracos de fechadura.

Enchem a boca com o poder da sociedade civil, sabendo à partida que não tem nenhum, e se depender deles, nunca terá. Os meios de comunicação estão normalmente ligados a interesses comuns aos dos partidos.

É o reino do fingimento onde estamos literalmente sem rei nem roque.

Apenas nos temos a nós, um povo espantoso, que mesmo já com idade de descansar, lança as mãos à terra e a mais trabalho para ajudar os filhos.

Aqui, onde estou, ouvindo o silêncio, as folhas cantando o vento, e saboreando um pôr-do-sol português, penso que era fácil ir buscar as soluções à Fonte como vou buscar a água. Límpida, fresca e que sacia a sede.

Leonor Martins de Carvalho

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

DEVERES DA VIDA SOCIAL EM PLENO VERÃO

Na silly season deve-se lançar um sound bite novo por dia.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

COISAS DA SILLY SEASON E NÃO SÓ

Só consigo ter conversas interessantes com pessoas acima dos setenta anos.

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

CARTEIRA DE SENHORA


DIA 29

Entrámos oficialmente de férias, a carteira e eu. Como previsto, rumamos a locais diferentes, condizentes com óbvias noções opostas daquilo que são férias. Ela, a fanática do in, segue para os destinos mais previsíveis e mais frequentados de Verão, as praias, correndo-as de Norte a Sul para não perder pitada. Já eu levanto voo, plano e aterro directamente onde tenha a certeza de que não há vivalma, para a felicidade máxima de ser quase eremita no campo.

Claro que o recado do fundo da carteira sem fundo tinha de ser as férias, assunto que lhe parece suficientemente inócuo antes da rentrée, que prevê explosiva.

Não é preciso tirar um curso superior sem ou com equivalências, ou frequentar as “novas oportunidades", basta a simples vivência de todos nós, para sabermos que a noção de férias varia essencialmente com a idade, o sexo e as disponibilidades financeiras.

As crianças, se as deixarem, e cada vez deixam menos porque as enchem de TPCs e actividades organizadas, aproveitam o tempo de férias até à última gota. Parece-lhes então que a vida é mesmo assim, que será sempre assim, que o resto do ano foi apenas um episódio para esquecer e que foram salvas da escravidão do tempo. Se desligadas das novas tecnologias, é o período de outras aprendizagens tão necessárias quanto as da escola: as brincadeiras sem tempo contado por estridente campainha e os ensinamentos dos avós.

Quando se chega a adulto, as férias são uma eterna tentativa de reviver as férias da infância, em busca daquela sensação única de libertação. Raramente conseguimos. O tempo, o malvado tempo, recusa-se a esticar. Os dias andam de TGV e de repente acabou o sonho.

Por outro lado, algumas mulheres só sabem que estão de férias porque aquela não é a sua cozinha. O trabalho, esse, é quase o mesmo. São os maridos dessas mulheres que têm férias, embora gostem de proclamar que ajudam imenso, porque tratam do grelhador e vigiam as febras ou as sardinhas, uma ou duas vezes por semana.

Férias de adultos à séria, férias-férias, são em hotéis ou pensões com direito a cama, mesa e roupa lavadinha, mesmo que por um fim-de-semana. Mas aí o vil metal tem a última palavra e para muita gente essa palavra é o nada inesperado “não”.

Há quem nunca tenha tido férias nem saiba o que significam, a não ser que a palavra equivale a de repente ter a casa cheia dos filhos e netos, emigrados nas cidades portuguesas ou estrangeiras, e o trabalho redobrado mas o coração cheio. São os que vivem da terra e lhe seguem os ritmos. Não há férias, há a época das batatas e a época das cebolas, a época da poda e a época da sementeira.

O tempo das férias de alguns é também o tempo das festas da terra, do foguetório, das procissões da padroeira, dos bailaricos e das quermesses. Os da terra tentam sempre que sejam inesquecíveis e o cartaz varia entre os jogos tradicionais, a banda juvenil, uma estrela internacional de música “pimba” ou o duo regional que a imita, consoante o dinheiro que foi possível reunir ao longo do ano.

É o tempo de pôr as leituras e escritas em dia, o de arrumar papéis e gavetas, o de passear sem rumo nem horas. Mesmo adultos, ainda sentimos o relógio do calendário escolar e as férias são o verdadeiro fim do ano.

Às vezes é também o tempo em que se apanham incautos com medidas que se querem discretas, esperando que passem despercebidas pela aposta em ninguém interromper férias para refilar.

Numa sociedade endoidecida cujo amante é o dinheiro e quem vence é a ganância e a ambição a todo o custo, as férias, cada vez mais resumidas, mas permitindo às famílias estarem juntas, podem ajudar a contrabalançar e a manter outro tipo de valores que não alguns dos que se ganham quando se é largado sozinho na brutalidade da vida e da rua, apenas com os exemplos dos que deveriam ser exemplo e afinal…

Entretanto, nestes tempos em que andamos de corda na garganta e gritos sufocados, façamos férias no país, mas não do país. Lembremo-nos também dos que já não têm férias porque nada têm.

Leonor Martins de Carvalho

terça-feira, 14 de agosto de 2012

PORQUE HOJE É DIA DA VITÓRIA DE ALJUBARROTA

PRINCÍPIO E FIM DA DINASTIA DE AVIZ

Da gloriosa Batalha de Aljubarrota (14 de Agosto de 1385) à trágica Batalha de Alcácer-Quibir (4 de Agosto de 1578).
Há meses assim.

UMA FUNDAÇÃO FUNDAMENTAL


Nota: Se os senhores deste sistema de merda se atreverem a querer extingui-la, cá estaremos para a defender.

A PROPÓSITO DE ALJUBARROTA

S. Jorge
(+ c. 303)
Mártir. Padroeiro Protector de Portugal, desde D. Afonso Henriques.
O auxílio prestado pelo Duque de Lencastre, filho de Eduardo III de Inglaterra, ao nosso El-Rei D. Fernando I, na luta contra Castela, trouxe-nos, daquele País aliado, um incremento de devoção a S. Jorge. O grito de «S. Jorge» substituiu, na guerra, para os Portugueses, o de «S. Tiago», até então usado em toda a Península. No lugar onde esteve içada a Bandeira Portuguesa, por ocasião da Batalha de Aljubarrota (1385), fundou-se, em 1388, uma ermida dedicada a S. Jorge. Em 1387, começou a incorporar-se na Procissão do Corpo de Deus, por ordem de D. João I, a Imagem do mesmo Santo a cavalo.

Nota: O Rei Eduardo III de Inglaterra tinha fundado, em 1330, a célebre Ordem dos Cavaleiros de S. Jorge, conhecidos também pelo nome de Cavaleiros da Jarreteira.

DATAS DE ONTEM, HOJE E SEMPRE

14 de Agosto:
1318 — Fundação da Ordem de Cristo.
1385 — Batalha de Aljubarrota.
1433 — Morte de D. João I, Rei de Portugal.

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

CARTEIRA DE SENHORA


DIA 28

Não sei se levo a carteira comigo nas férias. Precisamos ambas de folguedo em folga mútua. Lembrou-se de repente que não tinha chegado a falar da visita aos veleiros da Tall Ships Race e teimou que seria hoje, mesmo já tendo passado quase um mês.

Fomos ter com os veleiros num sábado, depois das tentativas goradas de quinta e sexta-feira em que uma qualquer desculpa esfarrapada se bateu em braço de ferro ganhando por larga margem à vontade férrea da curiosidade.

Não sei se a carteira já era conhecida naquele meio. Sei que lhe foi recusada a entrada em todos os barcos. Nem me atrevi a perguntar porquê. Limitámo-nos, pois, a namorá-los de fora e ir bisbilhotando o que era possível.

No cais de Santa Apolónia deparámo-nos com Lisboa inteira mais arredores bem alargados, passeando como numa hora de ponta desordenada, deparando-se a cada meio passo com alguém em sentido contrário e sem espaço lateral de fuga, mas estranhamente ninguém se queixava.

Os portugueses de hoje poderão não ser marinheiros ou aventureiros, há até quem diga que por cá ficaram os que nunca partiram nem partiriam, os que recusam o sonho, mas não há dúvida que um qualquer gene recôndito deve ser comum. Os veleiros tornaram-se irresistível atracção, misterioso íman que quase adornava Lisboa, tal o êxodo em direcção ao rio.

Os pretendentes a marinheiros por uma hora, sujeitaram-se a muitas à procura de lugar para o carro, mais outras tantas para entrar nos barcos visitáveis e teimavam, mantendo-se firmes, à torreira do sol batido a vento, esperando a sua vez. Queriam mesmo sentir. Sentir o quê, afinal? Saudades dos mares por eles não navegados? Saudades de olhar o infinito?

Ficavam também pregados ao chão, fascinados a ver os rituais nos barcos que tinham festa privada, os marinheiros impecáveis, de branco, alinhados no convés, o silvo do apito quando os convidados subiam a bordo, a continência…

De polacos a holandeses, passando por britânicos, com um, dois, três ou quatro mastros, ali à mão de semear repousavam veleiros para todos os gostos, alinhados cais afora, enfeitados com bandeirinhas multicolores para a ocasião, fingindo-se bem comportados depois de terem andado na boa vida em alegre correria ao sabor do vento entre Saint Malo e Lisboa.

Desta vez não veio nenhum barco sul-americano, esses que costumam ser muito animados, sempre com música, cantoria e bailarico a bordo. De qualquer forma, o suficiente da crème de la crème dos grandes veleiros apareceu.

Contudo, o que interessava mesmo aos portugueses eram os nacionais, os “seus”.

Nem sabiam que um dos britânicos já tinha sido de portugueses, o Jolie Brise, um cutter que até ganhou a primeira etapa. Esconderam-no atrás de outro, como acontecera, aliás, na passagem anterior da regata por Lisboa.

Mas os conhecidos lugres Creoula e Stª. Maria Manuela, a caravela Vera Cruz e sobretudo o navio-escola Sagres, deixavam os portugueses embevecidos e orgulhosos.

Às famílias completas, de pequenos às cavalitas ou em carrinhos, juntavam-se fotógrafos amadores e profissionais nas filas, ora espraiando-se ao longo das barreiras metálicas que ladeavam o cais, ora formando simples esquadria, ora serpente em movimento, perseguindo as poucas sombras disponíveis.

Muitos, os que ainda sonham em partir sem destino, embarcariam naquele instante se lhes fosse dada a oportunidade. Voltariam a ficar os que não sentirão nunca o apelo.

No dia seguinte, para ver a parada, a carteira correu para a primeira fila. Agora tenho a certeza absoluta da sua nacionalidade.

O Tejo matou saudades de embalar e conduzir docemente grandes veleiros de velas desfraldadas e Lisboa despediu-se como se o hoje fosse ontem.

As Tágides, que se preparavam para fazer as malas porque há tempos aconselhadas a sair, redescobriram o sorriso, deslizando inspiradas à frente das proas, e decidiram ficar, esperando mais dias assim, em que Lisboa se redime.

Leonor Martins de Carvalho

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

DA ORDEM DE GRANDEZA DOS PAÍSES

Quem quiser avaliar a actual saúde física e mental dos Estados tem agora à sua disposição uma boa tabela de medida: a lista das medalhas conquistadas nos Jogos Olímpicos pelos diversos Países, convenientemente ordenada de forma hierárquica. Desde aqueles que crescem robustos (China) aos que definham desmembrados (Rússia), passando pelos que se reerguem fortíssimos (Alemanha) e pelos que estagnam paralisados (EUA) — está lá tudo. Quanto a Portugal: é inqualificável, para não dizer que está «desclassificado»; nunca o fim da nossa Pátria esteve tão à vista.

RENASCIMENTOS NACIONAIS

Tenho tido um grande prazer em ver as Nações saídas da totalitária e internacionalista ex-URSS — libertadas finalmente do seu tirânico e cruel jugo — competirem com força e alegria nos Jogos Olímpicos.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

CARTEIRA DE SENHORA


DIA 27

Passada a ressaca do campeonato europeu de futebol em que Portugal esteve a milímetros e acabou saindo por uma porta grande deixando-nos bem orgulhosos, e em plena época de Jogos Olímpicos, quis a carteira voltar ao futebol e ao desporto, desta vez para um olhar crítico sobre como vêem os portugueses as suas selecções e os seus atletas em geral.

A propósito do campeonato, ouvi uns que, fingindo desinteresse e querendo mostrar superioridade sem saber bem como, faziam afirmações do género: “Não sou lá muito nacionalista”. Não se percebe bem do que estão a falar, se de patriotismo, se de nacionalismo ou se de outro conceito congénere. Nestas coisas não sabia que havia níveis, que se podia ser muito ou pouco, sempre pensei que ou se era ou não, mas assim vamos aprendendo. Parece que inventámos o meio patriota e o três quartos de nacionalista.

Outros preferem declarar o amor superlativo ao seu clube acima de qualquer outro amor, asseveram alto e a bom som que não querem saber da selecção, juram fidelidade só ao clube, e até fazem gala em levar a respectiva camisola aos jogos da selecção. Na hora H vemo-los sofrer tanto quanto os outros.

Depois há os entusiastas, que abraçam a selecção com todo o seu fervor, amam o hino, a bandeira, largam tudo para ver os jogos, organizam excursões em que da cabeça aos pés, mais a viatura e o animal de estimação, tudo tem as cores da bandeira. É tão cego esse amor ao símbolo que nem se apercebem da conjunção inestética de cores complementares, cuja explicação sempre soou a forçada, pura imposição republicana em ânsia de demarcação absoluta da monarquia, para ver se o povo se esquecia.

Os maiores entusiastas das selecções costumam ser os nossos em diáspora, porque a selecção é motivo de orgulho na Pátria longínqua, em seu entender não devidamente valorizada nos países onde vivem e lhes dá um sentido de pertença a uma comunidade. É a raiz que teimosamente querem preservar, quantas vezes regada apenas por eles, tal é a indiferença que lhes vota a terra-mãe.

Quando chegam os Jogos Olímpicos, aparecem as incongruências e o querer milagres à viva força. Até parece que no caso dos atletas portugueses ganhar medalhas é uma obrigação à moda das PPPs, uma obrigação contratual sujeita a indemnização. Como se não as ganhar fosse motivo de vergonha. Vá lá perceber-se porquê, mas de quatro em quatro anos os jornalistas descobrem um Portugal que desconhecíamos, um território imenso, com 400 milhões de habitantes, todos desportistas, e com campeões olímpicos em todas as esquinas. Duas semanas antes já fazem a contabilidade às medalhas e comparações com as Olimpíadas anteriores.

É verdade que temos um orgulho imenso de ver os nossos meninos e meninas em acção. Quando ganham, há milhões de casas, em Portugal e por todos os recantos do mundo onde haja um português, em que a lagrimita espreita a cada subida ao pódio, a cada medalha, a cada bandeira içada, a cada hino. Ainda conseguem considerar motivo de orgulho quando ficam nos cinco primeiros, condescendem mesmo talvez até ao décimo lugar. Neste orgulho desportista cabe também o barco da lusofonia: remamos, sofremos e exultamos com todos.

Nas vitórias volta subitamente o orgulho nesta terra, voltam as memórias do que fomos, jura-se que ainda seremos, que afinal somos capazes e a motivação anda pelas alturas da lua.

Mas teremos ainda orgulho quando perdem? Ou só não temos quando não se vê esforço? Não percebo esse orgulho seleccionado, dirigido. Sabe a pouco.

A fraca auto-estima de muitos portugueses cria obstáculos ao amor e ao orgulho. Este, sendo filho do amor, tem por isso de abranger o todo, um pacote herdado, com defeitos e virtudes. Ter orgulho em Portugal é amar a língua, o património, a paisagem, a História, a sabedoria popular, a nossa maneira de ser…

A falta de orgulho é porta escancarada para a total permissividade e cumplicidade na destruição sistemática, e até na venda ao desbarato do país e do povo.

De uma vez por todas temos de decidir se amamos, ou não, Portugal. E se amamos, temos orgulho. Sempre.

Leonor Martins de Carvalho

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

NOITES QUENTES DE ONTEM E DE HOJE

Tenho-me deliciado com a releitura do 2.º volume de Em Busca do Tempo Perdido, de Proust, muito especialmente com a 2.ª parte do mesmo, toda ela praia, com poéticas e pictóricas descrições; e, ainda e principalmente, suas estranhas e encantadoras relações humanas. Encantadoras porque há uma suspensão de todas as convenções sociais e as pessoas se entregam, por estes dias, em toda a sua plenitude, umas às outras, antes da rentrée vir repor a ordem social. Proust é que a sabia toda.

DELEITE ICONOGRÁFICO

É um prazer ver novamente a águia bicéfala bordada nas camisolas dos atletas russos.

CICLOS DE VIDA

Há claramente ciclos de vinte anos na vida humana. E não o afirmo com base apenas na observação física e psicológica da espécie. Constato que, até aos vinte anos, os filhos passam as férias com os pais. Aos vinte, desaparecem. Aos quarenta, estão regressados, também eles já pais. Aos sessenta, estão livres das responsabilidades da paternidade, com os filhos criados, e são talvez avós descontraídos. Aos oitenta, serão sábias figuras patriarcais e reverenciais, para toda a família. Aos cem, chegam os abençoados por Deus.
A luz solar ajuda a ver com mais clareza tudo isto. Experimentem.

NAVEGAR À VISTA

A cada dia que passa, ligo mais aos detalhes. São, cá para mim, e por causa de coisas que eu cá sei, os grandes definidores das pessoas. Irrita-me que se utilize o sinónimo «pormenores» para detalhes, pois estes são, precisamente e pelo contrário, os maiores indicadores da beleza e da personalidade de uma mulher: um anel ou uma pulseira (no dia e no lugar certos), um gesto (a maneira de mexer no cabelo, puxando-o ao alto, revelando os braços nus, para logo o deixar cair, ondulante e renovado), o livro que se lê e a forma como se o lê (levantando a cabeça, de vez em quando, e esticando o pescoço, para olhar o horizonte), o tom e o volume da voz (ajustados a cada momento e espaço), etc e tal. Enfim: aqueles pequenos nadas que são tudo.

PEQUENOS GESTOS QUE SÃO GRANDES PRAZERES

Muito gosto eu de escrever a primeira mensagem de cada mês aqui no blogue. E porquê? Porque, ali em baixo, no arquivo, aparece o nome do respectivo mês, com o correspondente ano e tudo. A sensação é igual, ou até melhor, do que a de atirar-me de caneta em riste a uma página em branco e caligrafar nela as primeiras palavras — indicadoras de local, data e assunto — com a minha querida caneta-de-tinta-permanente. Eu diria que me dá tanto ou mais prazer do que abrir as folhas de um livro antigo com a velha faca de prata de cortar papel que tenho para o efeito. Bem sei que isto não faz sentido, de um ponto-de-vista meramente lógico, mas é assim mesmo.