CARTEIRA DE SENHORA
DIA 14
Não quis acreditar no que a carteira
me estendia e rapidamente tentei reparar o estrago, voltando a pôr a mão lá
dentro para ver se saía outro tema. Fechou-se secamente, deixando-me
angustiada.
Era linda a princesinha fenícia…
Tão bela era Europa que Zeus esqueceu
Hera e, usando de astúcia, levou a princesa para Creta no seu magnífico dorso de
touro branco.
Os anos passaram e embora lhe tenha
sido concedida imortalidade o pacote não incluía a eterna juventude. As
inúmeras guerras foram marcando com cicatrizes todo o corpo de Europa. Acumulou
estrias com as muitas dietas “iô-iô” que essas guerras a obrigavam a fazer. As
rugas também não faltaram ao encontro dos séculos, encarquilhando os seus
estonteantes olhos e apetecível boca. Nem assim deixou de ser bela.
Atrás dela andou o pequenino mas galã
Japão, filho de Ásia e mais velho, que, orgulhoso, não se declarava e assim era
ignorado. Para engolir a frustração gerada por si próprio, Japão entregou-se ao
trabalho com afinco e nunca mais pensou noutra coisa. Mesmo assim, volta não
volta, para lhe chamar a atenção, inunda a casa da sua princesa com todos os
produtos do seu árduo labor.
Entretanto, no horizonte de Europa,
mesmo defronte dos seus olhos feiticeiros, surgiu um menino lindo que crescia
livre. Chamava-se Estados Unidos, e era um filho de América. Fez-se homem belo
e poderoso e Europa, entre a paixão e a inveja, decidiu usar a arma da sedução
como Zeus fizera consigo muitos séculos antes.
Após consulta afincada em todas as
enciclopédias, da Britannica ao Larousse passando pela Luso-Brasileira, visitas
a alfarrabistas, e demoradas pesquisas nas novas tecnologias, optou então pela
solução que lhe pareceu mais eficaz para tentar controlar o seu corpo: cosmética
e cirurgias plásticas.
Começou por fazer logo seis operações
(não desvendarei nunca quais), depois mais três séries de três injecções de botox. Como não ficasse contente com os
resultados, de uma assentada fez mais dez intervenções, tão inconfessáveis como
as primeiras seis. Com as últimas duas, experiências de Leste, já vai em vinte
e sete, e pensa dar ainda mais um retoque daqui a dois verões.
O rapaz prestou atenção mas não a que
ela queria. Além disso é mandão. Europa perdeu a cabeça e resolveu mostrar o
seu poder. Escolheu dezassete zonas do corpo que considerou estratégicas e
obrigou-as a trabalharem juntas, como se fossem uma só, pensando que assim iria
impressionar o seu amor.
Mas o malvado do Estados Unidos quer
é catrapiscar a China, outra filha de Ásia, mais velha que Europa mas dotada de
uma aparência enganadoramente jovem. Parece estar na força da vida e o rapaz
ficou encantado.
Entretanto o hercúleo esforço deu
cabo de Europa. As costuras das cirurgias deram de si, já nada está no seu
lugar, toda ela uma desgraça.
Esquece, Europa. Não sejas glutona e
controladora. Deixa o tempo marcar-te, aprende com ele. Deixa o teu corpo em
paz.
Um poeta enorme já nos revelou que o
rosto com que fitas é Portugal. Não desfigures esse rosto, não aprisiones os seus
olhos. Eles querem continuar a namorar o Atlântico, esse que nos apresentou o
Índico e o Pacífico. Os teus olhos querem, livres, navegá-los.
Leonor Martins de Carvalho
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