sábado, 20 de outubro de 2007

IN MEMORIAM OU ELOGIO DO PAI

Com a devida vénia, transcrevo este artigo, do Diário de Notícias, que me foi enviado por e-mail:

ACÇÃO DE GRAÇAS
[Maria José Nogueira Pinto escreve sobre o Pai, Luís Avilez, que faleceu no passado domingo, dia 14 de Outubro]

«Em nome da burocracia da morte, perguntam-me se deixaste testamento. Um papel escrito? Não, acho que não. Gostava de poder responder ao atencioso funcionário que o teu mais valioso legado é intangível.

"Morrer é só não ser visto", escreveu Pessoa. Não te vejo, mas escrevo. Queria escrever sobre a paternidade, o valor de ter pai, em vez do valor de ser pai. Ver, agora, essa relação pelo meu lado, como um nó cego atando as nossas vidas, tempo após tempo, até já nenhum de nós ser novo - eu avó, tu bisavô. E dizer deste sentimento de orfandade, de ter sido atirada para a linha da frente, sem essa retaguarda que construíste para nos proteger.

Dizíamos sempre que só se educa pelo exemplo. Porque só o exemplo é atestado da coerência da nossa própria vida. Por isso, pensar no que fui e no que sou é, também, um espelho de nós os dois. O que ficou tão claro e tão nítido, agora que te não vejo.

Foste um homem de fé. Fé em Deus, mas também (ou por isso mesmo) fé na condição humana, fé na capacidade de melhorarmos o mundo, de mudarmos as coisas, de fazer mais e melhor. Não eras um voluntarista mas um empreendedor laborioso, um homem de convicções e causas. A elas deste, em partes iguais, a tua auto-exigência e a tua coragem. Nunca ter medo do medo foi o que me ensinaste logo na infância. Foste um homem justo, esse complicado equilíbrio entre a razão e as razões dos outros, sem preconceitos ou verdades definitivas, porque a tua firmeza, naquilo que realmente importava, nunca dependeu de dogmatismos.

Tinhas um enorme sentido do bem comum e da causa pública, que serviste de modo tão meticuloso como empenhado. Ensinaste-nos o amor pelo grande e pelo pequeno; o respeito por tudo o que era importante; o exercício da disciplina e da resistência; a ganhar com humildade e a perder com dignidade; a preservar o bem maior da liberdade, recusando os enfeudamentos espúrios; e a nossa cabeça sempre levantada. Porque eras forte nunca foste violento e a tua autoridade prescindiu de qualquer arbitrariedade.

Foste um português orgulhoso de o ser. Acreditavas no destino desta terra com palavras e actos. Foste um agregador de pessoas muito diversas e entrosavas os entusiasmos em torno de projectos e realizações. Foste um homem de todas as gerações, classes sociais e raças, com amigos espalhados pelo mundo, humildes e poderosos, sem distinção na lealdade com que construíste tantas e tão duradouras amizades.

Mas foste, igualmente, um homem cheio de sentido de humor, de graça, de ironia fina. E um homem do teu tempo, informado e atento, de leitura constante, aberto às ideias e à sua discussão. Educaste-nos, indiferente às regras então estabelecidas, à distinção de estatuto entre rapaz e rapariga, considerando-nos aptas para tudo: as brincadeiras da infância, o desporto, as leituras, as viagens, os estudos ou as escolhas profissionais. Gostavas de nos estimular com acesas trocas de opinião sobre os mais variados temas, puxando por nós na argumentação, no gosto pela polémica, na defesa dos nossos pontos de vista.

Em todos os momentos importantes da minha vida, nas grandes decisões, fui ouvir-te. Nunca me deixaste fazer batota. O certo e o errado, ao pé de ti, tornavam-se claros e incontornáveis.

Até adoeceres, foste esse pai da infância, da adolescência, da idade adulta, sempre ali, acompanhando o que a vida foi fazendo com cada um de nós. No momento em que deixei de te poder ver, senti a urgência de agradecer-te por esta herança, que não consta de nenhum documento e pelas memórias que inundam a minha cabeça: o tapete de linóleo com os jogos desenhados, o carro a pedais pintado de azul, o trapézio e as argolas, a fisga, a pressão de ar, o cão, a Margot Fonteyn e Nureyev no meu primeiro Lago dos Cisnes, a frisa no S. Luiz, os passeios de barco, a viagem à Europa por minha conta e risco que nenhum outro pai, nessa época, teria permitido. E, porque tu foste esse pai atento ao detalhe e à surpresa, agradecer-te também as "delícias" da Bijou, os chocolates da Arcádia e as nozes e as "joaninhas" do Faz-Tudo, que tu trazias para casa, ao fim do dia, chamando: "Meninas, meninas!"

Adeus, a Deus...»

Maria José Nogueira Pinto