segunda-feira, 13 de outubro de 2008

O HORROR DO NADA

La Dolce Vita (Itália/França, 1960), de Federico Fellini.
Fellini antecipou metaforicamente neste filme a decadência da cultura europeia tal como a vivemos desde há séculos. Ninguém quis olhar e ver a fita em profundidade. Ainda agora, os relatos da película apontam para um boémio e belo dolce fare niente de uma decadente alta sociedade romana. Mas, o que vemos e ouvimos é muito mais do que isso. Obrigatório deveria ser exibir em todas as escolas a última parte de La Dolce Vita: após uma triste orgia, e ainda mal refeitos do tédio, um grupo de bons vivants encaminha-se para a praia, ao nascer do Sol. Lá, espera-os um monstro marinho dado à costa e recolhido por pescadores. A estranha criatura mira-os — morta ou viva, nunca saberemos — com um perturbante olhar fixo. Mas a coisa não fica por aqui. O grupo de pândegos, derreado por uma ressaca brutal, decide retirar-se. No entanto, Marcello Mastroianni (colega do foto-jornalista Paparazzo, que assim dá origem à designação profissional) fica para trás, atraído por uma angelical adolescente, que o chama por gestos e palavras, surgida do nada, sem estar ligada à referida pandilha. Ao longe, ele tenta entendê-la, percebê-la, compreendê-la... Mas, crueldade suprema, não consegue sequer ouvir as palavras que saem da sua boca. O som do mar está ali, como que criando uma barreira natural à comunicação. Hesitando ainda em se aproximar, logo é repescado por uma vamp ainda semi-embriagada que o leva por um braço, enquanto a rapariguinha fica a encarar-nos de frente — agora a nós, espectadores. Nunca experimentei com tanta força e frieza o vazio e o silêncio numa sequência de fotogramas, porque senti que Fellini se dirigia a mim, a todos nós.
Os europeus renegaram as suas raízes espirituais, indo ao ponto de não se deixarem bafejar pela Graça.
É só isto. E está lá tudo. O horror do nada. A vida sem sentido.