SÉTIMA ARTE 7
Todos Nós Temos Amália na Voz*
Em Portugal, no ano de 1947, entre as sete longas-metragens produzidas, surge Fado, História d’Uma Cantadeira, que, dez anos depois, virá a ser o primeiro filme exibido pela Televisão Portuguesa, no arranque da RTP.
O seu realizador é Perdigão Queiroga, nascido em Évora, em 1916, e morto fisicamente num acidente de automóvel, em 1980. Este, depois de uma fase de aprendizagem das técnicas cinematográficas, trabalha como profissional nas áreas da imagem/fotografia e da montagem. De seguida, em plena II Guerra Mundial, e Golden Age do Cinema Americano, ruma a Hollywood — para os estúdios da major Paramount (uma das cinco maiores empresas de produção cinematográfica dos E. U. A.) —, onde trabalha em montagem. De regresso à Pátria, inicia a preparação de Fado, que será o seu primeiro filme de fundo, numa obra com dezenas de títulos.
A sua filmografia divide-se, como era hábito nos cineastas clássicos completos, entre documentários (a que hoje chamaríamos «institucionais») e longas-metragens de ficção. Outro ponto alto da sua carreira viria a ser As Pupilas do Senhor Reitor (1961), a partir de Júlio Diniz, e que foi o primeiro filme nacional rodado em cinemascope (formato de ecrã largo).
Mas vamos ao nosso Fado, História d’Uma Cantadeira (1947), de Perdigão Queiroga, que a isso viemos e nisso estamos. Este filme baseia-se, muito livremente, na biografia da grande Amália Rodrigues, então no auge da sua carreira e beleza. Será esta formidável «cantadeira» a protagonizar a fita, com a qual iluminará a tela, como estrela deste melodrama romântico. Para que a musa lusa brilhe, em toda a sua plenitude, muito ajudarão os belíssimos fados de Frederico de Freitas, as letras de Amadeu do Vale, Linhares Barbosa, Gabriel de Oliveira e João Mota, as «sínteses de fados» de Frederico Valério e Jaime Santos, os versos de Silva Tavares e José Galhardo; e, toda esta equipa de luxo, sob a direcção musical de Jaime Mendes.
Abordemos então agora a história, propriamente dita: os cânones do melodrama, herdados — pelo Cinema — da Literatura e do Teatro do século XIX, estão lá todos; e, de uma forma não muito diferente daquela como eram praticados, à época, em Hollywood, mas convenientemente transpostos para a realidade social da Lisboa dos anos 40 do século passado, como se pretende.
Assim, temos uma fadista pobre de Alfama, com um namorado (o guitarrista Júlio — interpretado convincentemente pelo grande Virgílio Teixeira), que, tornando-se famosa, sai do seu bairro, abandonando o apaixonado companheiro e trocando-o pelos círculos da alta-burguesia e da aristocracia de Lisboa. Por fim, depois de peripécias várias, numa trama narrativa bem urdida, temos um final na boa tradição do happy end da Capital do Cinema. Se destaco esta ligação ao cinema clássico narrativo sonoro, que tinha as suas regras ditadas pelos americanos, é porque o filme tem uma desenvoltura própria dos melhores produtos saídos dessas «fábricas de sonhos» que eram os Estúdios de Hollywood.
Perdigão Queiroga junta-lhe ainda os principais ingredientes da Cultura Popular Portuguesa — olhada por alguns arrivistas com desconfiança, pois talvez lhes faça lembrar o berço que renegam —, e, assim, consegue fazer um filme que é um dos maiores êxitos de bilheteira — até hoje — do Cinema Português, ao mesmo tempo que recebia críticas muitíssimo positivas; conjugação esta não habitual. Capas Negras, de Armando de Miranda, desse mesmo ano e também com Amália, foi demolido pela crítica, e com toda a razão, devido ao cinema pobrezinho que revelava.
Neste caso — no nosso Fado —, o pano de fundo de carácter realista com que são pintados os bairros tradicionais de Lisboa, a excepcional representação do galã português de dimensão internacional — Virgílio Teixeira —, o rosto, a voz, e a naturalidade expressiva de Amália, o rigor fotográfico de Francesco Izzarelli, a fluidez da montagem do próprio Perdigão Queiroga — em «estilo invisível», à maneira de Hollywood —, as presenças de António Silva, Vasco Santana, Eugénio Salvador, Tony d’Algy, Raul de Carvalho, e mais uma mão cheia de outros grandes actores, fizeram toda a diferença.
Convém aqui realçar que o Fado e os Toiros são dois mitos permanentes da iconografia nacional; e, se convenientemente levados para a Cinematografia Portuguesa — com um tratamento narrativo e plástico sempre renovado, de acordo com o espírito dos tempos —, podem constituir-se como uma das matrizes estruturais de um verdadeiro género indígena. Os E. U. A. fazem exactamente o mesmo com os seus géneros: Western, Gangsters, Musical. Esta linha do Cinema Português foi, aliás, logo consagrada no primeiro filme sonoro (sonorizado, no entanto, ainda, em França): Severa, de Leitão de Barros.
Em relação a Fado, História d’Uma Cantadeira, diga-se que o Estado Novo — através do SNI, de António Ferro — pareceu gostar a atribuiu-lhe o Grande Prémio nesse ano de 1947, demarcando-se, deste modo, de Capas Negras, que, apesar de tudo, teve um maior sucesso de bilheteira (mesmo um dos maiores de sempre, até à actualidade).
De facto, António Ferro, com o seu inovador bom-gosto, sabia o que fazia ao distinguir este filme, pois Fado tem tudo: por um lado, uma extraordinária beleza plástica — esse rosto de Amália nada fica a dever aos de outras divas do Cinema Mundial, muito graças ao já referido director de fotografia italiano, que tinha trabalhado no Camões, de Leitão de Barros, e que tem um estilo visual a fazer lembrar o expressionismo alemão; por outro, a banda sonora, já convenientemente aqui destacada, que reunia os melhores autores da música popular portuguesa de então. Finalmente, os diálogos — esse ponto fraco da Cinematografia Nacional — são convincentes e vivos, e ditos com boa dicção, e ainda melhor interpretação, depois de saídos da pena criativa de Armando Vieira Pinto.
E agora vou mas é rever a fita, que fiquei cheio de vontade, e esperar — pessimista, mas esperançoso que sou — que o Cinema Português se reconcilie com o seu público e possa voltar a erguer produções desta dimensão, para que, como neste caso, não abdicando da requintada expressão estética do autor, possa servir, com narrativas escorreitas e simples, temas onde as pessoas realmente se revejam, pois já basta de décadas de divagações umbiguistas, em tom hermético, para consumo próprio (com distintas excepções à mistura, apesar de tudo).
Bem sei que já não temos Amália, aqui e ao vivo, nem Virgílio Teixeira — e que falta fazem! —, mas há por cá novos e bons actores — potenciais novas estrelas! Estarão os actores portugueses para sempre fadados a fazer tele-novelas em estilo sul-americano, ou poderão voltar a brilhar em Filmes Portugueses populares e de qualidade?...
… A ver vamos.
João Marchante
*Texto que escrevi para a revista Alameda Digital (Ano I — N.º 7, Março/Abril de 2007). Republico-o agora nesta nova versão com ligeiras alterações no blogue Eternas Saudades do Futuro).
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