segunda-feira, 28 de setembro de 2009

SENSORIALIDADE E ESCRITA

O dia divide-se em: horas visuais (as da manhã); horas sensuais (as da tarde); horas musicais (as do cair do dia). O que se faça nas horas visuais resulta nítido de contornos em conceitos e frases. Nelas escrevem os aforistas e melhor trabalham os pintores. Nas horas sensuais estão despertos os baixos sentidos — tacto, paladar e olfacto. São as horas de apalpar, de comer e de cheirar; e vão do meio-dia às quatro ou cinco da tarde, no inverno. O que se escreve nesse intervalo vem repassado desse sentidos. Cai a tarde, são as horas musicais. Então desperta o prazer do ouvido, e a prosa ou o verso são harmoniosos e ritmados.
São as horas estilísticas. Assim o género do poeta ou prosador é conforme as horas em que escreve: os clangorosos derrotistas escrevem de noite. Os variados em imagens escrevem de manhã. Os encharcados de sensorial carnal, os amorosos directos, escrevem do meio-dia às quatro, no inverno. Os doces de linguagem, de ritmo, os amorosos platónicos, escrevem por volta do sol-posto.
In Poesia e Alguma Prosa, de Mário Saa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Biblioteca de Autores Portugueses, Lisboa, 2006. (In «Dez minutos com Mário Saa — Excerto de uma entrevista», Diário de Lisboa, 24 de Janeiro de 1936.)