SEM AGENDA
O Paraíso
«Avô, o que é o comunismo?» - lancei-lhe seca e ingenuamente.
O meu querido avô paterno, na ocasião já um venerável octogenário, respondeu prontamente e sem hesitação: «É a crença de que é possível o paraíso na terra».
Esta fórmula surpreendeu-me um tanto naquela altura, não lhe abarquei logo o completo alcance, mas não pedi mais explicações - pressenti ser objecto precioso, algo para guardar e examinar pela vida fora. Hoje e desde há já muito, penso não me ter nisso enganado.
Eu tinha então dezoito anos, estávamos no período marcelista. O leitor paciente desculpará este regresso ao passado - prometo que serei breve - mas acho-o necessário, antes de começar os pobres rabiscos sobre a tela. Não gosto em geral de falar de aspectos mais particulares da minha vida e nunca quando isso a ninguém importa, mas isto agora são os preparativos básicos, é como entrar na sala de trabalho, abrir as cortinas e começar a armar o cavalete.
Tive o grande privilégio de ser, literalmente, um bem-nascido - constato-o simplesmente e sem superioridade - sobretudo pelo ambiente familiar, e até certo ponto também social, excepcionais - em contraste com o doloroso espectáculo de outros contextos testemunhados em tempos mais recentes - que pontificou os meus verdes anos. Desses dias agora já remotos queria só enumerar os seguintes factos que penso serem reveladores dos reais contornos daquele referido privilégio, aliás, ao que julgo, comum a muitos outros meus contemporâneos: recordo vivamente a constante dedicação mútua entre os meus queridos pais; o muito mas também exigente amor, deles e dos meus avós, para comigo e os meus irmãos, assim como o afecto geral da restante roda familiar, incluindo as velhas e estimadíssimas criadas; não me recordo de nalgum momento não ter sabido dizer o doce nome de Jesus ou de algum dia ter questionado intencionalmente a minha Casa, a minha Pátria, as minhas obrigações elementares ou a autoridade de quem a tinha, e detinha.
Tudo isto para mim era normal. Na família - e em bastantes outras famílias próximas, também seguramente - estas noções eram aceites e vividas tão naturalmente como quem respira e certamente adquiridas desde o berço em suaves e imperceptíveis doses, dir-se-ia “gota a gota”, transmitidas a qualquer momento e sobretudo através do exemplo, e suponho que sem a preocupação de um imperativo expresso: não seria ainda caso para tal, naquele tempo. Era, e foi, visto agora à distância, todo um ambiente, um fabuloso outro mundo em miniatura, que a certo ponto da minha vida deixou de ser o predominante e depois se foi aceleradamente apagando: se por um lado saí do bem-aventurado “nicho ecológico” da inocência, essa mudança coincidiu também e foi sucedida pela chegada progressiva e em rajadas da série de influências revolucionárias de génese e propagação internacionais, de todos conhecidas, que tanto inebriaram muitos dos meus contemporâneos, inclusive amigos e até queridos familiares, e que também me rondaram, embora com pouco êxito. Vi-me mesmo, não raras vezes e em certos meios, em clara minoria ou solidão. Talvez um pouco mais tarde do que outros da minha geração, mas faça-se-me justiça, sem nunca me ter deixado levar pelas miragens da hora, dei-me conta de como a vida é, e sempre afinal deverá ter sido, uma ingente luta bipolar. Ao longo dos anos fui-me convencendo ser esta luta não necessária ou primordialmente entre pessoas, grupos ou povos mas, sempre à partida, entre impulsos ou consciências e entre visões ou crenças e os seus fantasmas de vária espécie - na sugestiva expressão de João Ameal - a começar dentro de nós próprios e em todos os lugares habitados. E fui, também por isso, ficando de pé bem atrás - Obrigado, meu Avô! - aos apregoados paraísos na terra e a todos os cantados “mundos melhores”. E acabei por achar muito plausível que os casos conhecidos que porventura disso mais se aproximaram tenham sido excepções sempre muito limitadas e parciais.
Contudo, arrisco hoje apontar um desses exemplos, que muito bem conheci: precisamente, o relembrado tempo dos meus verdes anos, neste velho país, Portugal.
E os outros portugueses, qual é a sua história e o que é que hoje esperam? Tal como eu, podem todos falar e ser ouvidos, se o quiserem fazer, certo? Bem…, na verdade, não exactamente. Mas passemos adiante, que essa é uma outra história.
A situação de Portugal, como a do «mundo ocidental» em geral, se é que este ainda existe, parece num beco sem saída. Não falo da «crise» novíssima de agora, que pode ser e é certamente inquietante para muita gente e não sabemos bem como vai acabar, mas que me parece, em todo o caso, um fenómeno perfeitamente secundário, uma consequência mais de um mal muito mais fundo, antigo e persistente a que se chamou e tem chamado, pelo menos até há pouco tempo, a crise do Ocidente, designação herdeira da Civilização Cristã. Esta enorme crise, que é sobretudo espiritual e moral, essa sim, é o nosso maior problema, é o problema. E não sou eu que o digo, evidentemente: já muitos, infinitamente mais autorizados, desde há muito o disseram e descreveram, e continuam dizendo e actualizando.
Em todo o caso, penso também que agora, como sempre - e contra mim falo - o pior de tudo é negar a necessária luta, é adormecer. Enquanto esperamos que este grande interregno em que vimos vivendo esgote os seus dias, e precisamente para que isso venha a suceder com a maior brevidade possível, ou já amanhã ou porventura só daqui a mais quinhentos anos, algo de bom deverá sempre fazer-se, ou tentar-se. Oxalá os portugueses de boa vontade - que deveriam, idealmente, ser todos os portugueses - queiramos, e possamos, em qualquer situação e desde que cada um saiba aceitar a sua parte da caminhada - que poderá ser eventualmente, como a do filho pródigo, voltar atrás no caminho - chegar um pouco mais perto do paraíso possível. Não logo na terra toda, no agora «Planeta», não «para ontem» ou de repente, não «apesar dos inevitáveis custos colaterais», mas sim primeiro na nossa Casa e na nossa Terra, sim só o que convém em cada dia, sim respeitando o que merece respeito, e sobretudo, sim a começar dentro de nós.
E também arrisco dizer, aos que a isso aspirarem - mas também e até sobretudo aos restantes, que nunca nada se perde - que talvez assim, e só no fim de todo o caminho, acabemos por vislumbrar, ao longe ao menos, as verdadeiras portas do Paraíso.
Francisco Cabral de Moncada
«Avô, o que é o comunismo?» - lancei-lhe seca e ingenuamente.
O meu querido avô paterno, na ocasião já um venerável octogenário, respondeu prontamente e sem hesitação: «É a crença de que é possível o paraíso na terra».
Esta fórmula surpreendeu-me um tanto naquela altura, não lhe abarquei logo o completo alcance, mas não pedi mais explicações - pressenti ser objecto precioso, algo para guardar e examinar pela vida fora. Hoje e desde há já muito, penso não me ter nisso enganado.
Eu tinha então dezoito anos, estávamos no período marcelista. O leitor paciente desculpará este regresso ao passado - prometo que serei breve - mas acho-o necessário, antes de começar os pobres rabiscos sobre a tela. Não gosto em geral de falar de aspectos mais particulares da minha vida e nunca quando isso a ninguém importa, mas isto agora são os preparativos básicos, é como entrar na sala de trabalho, abrir as cortinas e começar a armar o cavalete.
Tive o grande privilégio de ser, literalmente, um bem-nascido - constato-o simplesmente e sem superioridade - sobretudo pelo ambiente familiar, e até certo ponto também social, excepcionais - em contraste com o doloroso espectáculo de outros contextos testemunhados em tempos mais recentes - que pontificou os meus verdes anos. Desses dias agora já remotos queria só enumerar os seguintes factos que penso serem reveladores dos reais contornos daquele referido privilégio, aliás, ao que julgo, comum a muitos outros meus contemporâneos: recordo vivamente a constante dedicação mútua entre os meus queridos pais; o muito mas também exigente amor, deles e dos meus avós, para comigo e os meus irmãos, assim como o afecto geral da restante roda familiar, incluindo as velhas e estimadíssimas criadas; não me recordo de nalgum momento não ter sabido dizer o doce nome de Jesus ou de algum dia ter questionado intencionalmente a minha Casa, a minha Pátria, as minhas obrigações elementares ou a autoridade de quem a tinha, e detinha.
Tudo isto para mim era normal. Na família - e em bastantes outras famílias próximas, também seguramente - estas noções eram aceites e vividas tão naturalmente como quem respira e certamente adquiridas desde o berço em suaves e imperceptíveis doses, dir-se-ia “gota a gota”, transmitidas a qualquer momento e sobretudo através do exemplo, e suponho que sem a preocupação de um imperativo expresso: não seria ainda caso para tal, naquele tempo. Era, e foi, visto agora à distância, todo um ambiente, um fabuloso outro mundo em miniatura, que a certo ponto da minha vida deixou de ser o predominante e depois se foi aceleradamente apagando: se por um lado saí do bem-aventurado “nicho ecológico” da inocência, essa mudança coincidiu também e foi sucedida pela chegada progressiva e em rajadas da série de influências revolucionárias de génese e propagação internacionais, de todos conhecidas, que tanto inebriaram muitos dos meus contemporâneos, inclusive amigos e até queridos familiares, e que também me rondaram, embora com pouco êxito. Vi-me mesmo, não raras vezes e em certos meios, em clara minoria ou solidão. Talvez um pouco mais tarde do que outros da minha geração, mas faça-se-me justiça, sem nunca me ter deixado levar pelas miragens da hora, dei-me conta de como a vida é, e sempre afinal deverá ter sido, uma ingente luta bipolar. Ao longo dos anos fui-me convencendo ser esta luta não necessária ou primordialmente entre pessoas, grupos ou povos mas, sempre à partida, entre impulsos ou consciências e entre visões ou crenças e os seus fantasmas de vária espécie - na sugestiva expressão de João Ameal - a começar dentro de nós próprios e em todos os lugares habitados. E fui, também por isso, ficando de pé bem atrás - Obrigado, meu Avô! - aos apregoados paraísos na terra e a todos os cantados “mundos melhores”. E acabei por achar muito plausível que os casos conhecidos que porventura disso mais se aproximaram tenham sido excepções sempre muito limitadas e parciais.
Contudo, arrisco hoje apontar um desses exemplos, que muito bem conheci: precisamente, o relembrado tempo dos meus verdes anos, neste velho país, Portugal.
E os outros portugueses, qual é a sua história e o que é que hoje esperam? Tal como eu, podem todos falar e ser ouvidos, se o quiserem fazer, certo? Bem…, na verdade, não exactamente. Mas passemos adiante, que essa é uma outra história.
A situação de Portugal, como a do «mundo ocidental» em geral, se é que este ainda existe, parece num beco sem saída. Não falo da «crise» novíssima de agora, que pode ser e é certamente inquietante para muita gente e não sabemos bem como vai acabar, mas que me parece, em todo o caso, um fenómeno perfeitamente secundário, uma consequência mais de um mal muito mais fundo, antigo e persistente a que se chamou e tem chamado, pelo menos até há pouco tempo, a crise do Ocidente, designação herdeira da Civilização Cristã. Esta enorme crise, que é sobretudo espiritual e moral, essa sim, é o nosso maior problema, é o problema. E não sou eu que o digo, evidentemente: já muitos, infinitamente mais autorizados, desde há muito o disseram e descreveram, e continuam dizendo e actualizando.
Em todo o caso, penso também que agora, como sempre - e contra mim falo - o pior de tudo é negar a necessária luta, é adormecer. Enquanto esperamos que este grande interregno em que vimos vivendo esgote os seus dias, e precisamente para que isso venha a suceder com a maior brevidade possível, ou já amanhã ou porventura só daqui a mais quinhentos anos, algo de bom deverá sempre fazer-se, ou tentar-se. Oxalá os portugueses de boa vontade - que deveriam, idealmente, ser todos os portugueses - queiramos, e possamos, em qualquer situação e desde que cada um saiba aceitar a sua parte da caminhada - que poderá ser eventualmente, como a do filho pródigo, voltar atrás no caminho - chegar um pouco mais perto do paraíso possível. Não logo na terra toda, no agora «Planeta», não «para ontem» ou de repente, não «apesar dos inevitáveis custos colaterais», mas sim primeiro na nossa Casa e na nossa Terra, sim só o que convém em cada dia, sim respeitando o que merece respeito, e sobretudo, sim a começar dentro de nós.
E também arrisco dizer, aos que a isso aspirarem - mas também e até sobretudo aos restantes, que nunca nada se perde - que talvez assim, e só no fim de todo o caminho, acabemos por vislumbrar, ao longe ao menos, as verdadeiras portas do Paraíso.
Francisco Cabral de Moncada
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