quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

SEM AGENDA



A Rebelião

Religião e rebelião: se tal não nos tivesse já sido dito por Quem de direito, a evidência tem demonstrado ao longo dos tempos que estes dois grandes reinos do espírito habitam, a cada momento, como vizinhos irredutivelmente hostis, a alma de todos e de cada homem.

A religião, propriamente dita - pois há também os seus simulacros e substitutos de várias espécies - liga-nos, ou religa-nos, à nossa fonte original e lança-nos, ou relança-nos, para o nosso fim de destino - é a âncora que nos é oferecida e que nós próprios arremessamos no esforço de compreender a miraculosa maravilha da criação e nesta, a misteriosa singularidade do nosso exclusivo privilégio de seres conscientes e, no momento seguinte, é a bússula que nos orienta, cada qual no cumprimento da sua vocação particular, na aventurosa demanda de um porto distante - para acabarmos por descobrir, assim o creio, no fim da viagem e se lá chegarmos, termos regressado por caminho vário ao ponto de partida original.

A rebelião, entendida como o não reconhecimento ou a desobediência declarada a uma ordem transcendente, que é a ordem que nos é dada viver e na qual, pela qual e com a qual somos convidados a colaborar amorosamente ao longo de toda a nossa vida, radica na nossa natureza de seres conscientes - os animais propriamente não se rebelam - possuidores de inteligência e vontade, e, simultaneamente, portadores das inclinações naturais próprias do nosso corpo animal. Desta combinação de atributos, única no homem, mostra a experiência que facilmente pode surgir o ódio à ordem superior que nos rege, que nós não estabelecemos e que manifestamente se opõe, tantas vezes, ao nosso abusado amor próprio e aos nossos mais variados desejos. Eis então a paixão do orgulho e a concupiscência, que serão, nas suas formas desregradas, os dois grandes sinais de rebelião.

Os nossos primeiros pais foram grandes rebeldes e disso se vieram a arrepender; por eles, a nossa condição terrena mais não é que a herança da sua continuada e merecida penitência. Porém antes, já Lúcifer, o diabólico anjo caído, foi o maior e definitivo rebelde e até hoje e em todos os tempos ele e os seus exércitos têm espalhado a rebelião pelo mundo.

A Virgem Imaculada, Mãe de Deus e Nossa Senhora, personifica, talvez mais que nunca no momento da Anunciação do anjo, o contraponto radical e absoluto da rebelião. Nós católicos, acreditamos não só que Ela foi poupada à nascença de toda e qualquer predisposição para se rebelar, como foi também predestinada a ser a maior e mais eficaz defensora e intercessora da humanidade na guerra sem tréguas com o rebelde.

Cada um de nós é simultaneamente um religioso e um rebelde, e destes ambos, parte em acção e parte em potência; a esmagadora maioria será provavelmente, no correr da vida, uma mescla dinâmica mais ou menos consciente e mais ou menos 'equilibrada' de ambas as coisas; contudo, os que mais têm feito a história do mundo, não só como actores directos mas também em papeis de retaguarda, têm saído sobretudo das pequenas minorias radicais em ambos os extremos, tanto os muito rebeldes - os grandes revolucionários modernos serão porventura o exemplo máximo - como os muito religiosos, que no seu caminho traçado, por reacção fatalmente se opõem aos primeiros, e assim também não podem ser, em coerência, senão convictos ou obrigados contra-revolucionários. O que mostra, ao contrário do dito popular, que nem sempre no meio é que está a virtude.

Quanto a mim, direi apenas que não ambicionando nem rejeitando entrar para a história, não vejo outra alternativa que não seja o dever de procurar reagir, tal como tantos outros já fizeram e vêm fazendo, com os meios encontrados que a Providência quiser dar, e a começar por mim próprio, contra todas as forças destrutivas rebeldes.

E a terminar lembremo-nos que Nossa Senhora é também Rainha de Portugal. Neste longo tempo de «vil tristeza» e «cerração», cujo dissipar não sabemos o dia e em que o rebelde parece campear como nunca, peço a todos que me acompanhem numa sentida prece a Ela elevada por esta sua dilecta Nação.

Francisco Cabral de Moncada