quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

SEM AGENDA



Portugal


« Le Poète est semblable au prince des nuées
Qui hante la tempête et se rit de l’archer;
Exilé sur le sol au milieu des huées,
Ses ailes de géant l’empêchent de marcher. »

Charles Baudelaire – quadra final do poema L’Albatros, in ‘Les Fleurs du Mal’, 1857


A situação de Portugal parece ser, de há umas décadas a esta parte, como a do albatroz em terra - feito para a viagem dos ares, as suas enormes asas não o deixam andar.

A Nação Portuguesa é e sempre foi, mais que tudo, uma ideia. Uma ideia colectiva em acção.

Herdeira de uma antiga vontade de autonomia com fundas mas não inteiramente identificadas raízes, com o rei fundador estabelecem-se as condições iniciais para a futura ideia nacional. Na senda de seu pai, Afonso Henriques abriu a porta desse caminho, provavelmente sem o calcular senão ao de leve - as fidelidades da época eram ainda sobretudo outras - começando pelo que deliberadamente procurou, e acabou por estar, ao seu alcance, e tal foi: inaugurou um novo estado à força da espada e com muita diplomacia, e projectou-o o mais que pôde pela Cruzada. Com visão clara, guisou um plano - sabia bem o que queria e com vontade de ferro o cumpriu.

Com João Primeiro, Mestre de Avis, alcançou a nação, em Aljubarrota, a exacta noção de si própria, nas palavras do ancião Diogo Lopes Pacheco, vindo do seu exílio em Castela, e proferidas no mesmo campo da batalha, a seu filho surpreso: «onde haveria eu de estar senão a ajudar este homem a defender este Reino?». Por esta altura, a saída para fora da península, e para o mar, foi claramente uma questão de sobrevivência política, já antes ensaiada, com a chegada às Canárias, e agora - 22 de Agosto de 1415 - com a tomada de Ceuta, como início também da grande arrancada do que se veio a revelar ser, afinal, o cumprimento de uma vocação de destino e a nossa obra maior: a Expansão Ultramarina.

O resto para cá, não vou redizer. Sagrada ‘avant la lettre’ em Ourique, a Nação Portuguesa fez-se através dos séculos saindo para fora de si própria e a si voltando, sabendo dar e receber, como afinal manda o Evangelho: levou a Cruz de Cristo e a sua cultura, e com elas a humana convivência, a quase todo o mundo e trouxe os novos horizontes e as desconhecidas riquezas de toda a espécie, que não só em espécie – garantes da sua liberdade essencial. E com tudo isto, presenteou de bandeja a velha Europa, rabugenta e mal agradecida.

Toda a grandeza desta grande Obra, toda a sua beleza, toda a sua justiça, apesar de todas as vicissitudes e as humanas falhas, têm um nome e este é: Portugal. E o reconhecê-lo não pode senão deixar-nos cair de joelhos e largar em lágrimas. De gratidão, primeiro, mas também…, ai de nós…, de quase desespero e a gritar socorro, depois, e sobretudo, hoje.

Toda aquela imensa obra, que era a nossa ideia em marcha, que era a nossa realidade e o nosso sonho ao mesmo tempo, terminou abruptamente num triste dia - o nosso bem conhecido vinte e cinco barra quatro.

Contudo, a nossa História é hoje, talvez mais que nunca, o nosso mais precioso bem colectivo, não como saudade do passado mas como saudade do futuro - pois ela é e será, estou em crê-lo, a nossa única razão de regeneração e ressurgimento. Ela é ainda, em todo o caso, a boa cal que ainda nos vai mais ou menos ligando, enquanto povo com mais ou menos memória.

Não é toda minha a sugestão usada na seguinte analogia: o ligante grosseiro e estragado que nos têm querido agora impingir é cimento de importação. Chama-se materialismo. Puro e duro. Vem junto com instruções de construção que nos são estranhas e, para cúmulo, querem agora acabar de demolir a lindo palácio de que éramos as diferentes pedras, para depois, com as mesmas, e com muitas outras de outras ruínas, mas só depois de todas convenientemente recicladas em tijolos idênticos, reerguerem uma nova, monstruosa, babélica torre. É esta a estranha ideia totalitária em marcha, a qual, desgraçadamente com a ajuda dos novos Migueis de Vasconcelos, já fez algum, demasiado caminho. Nada mais hostil, como é óbvio, à nossa ideia constitutiva e primacial. Esta contudo, «ainda não é finda».

O albatroz tem de voltar a voar - a sua razão de ser, lembremos, é a eterna viagem. Para já, porém, está muito ferido e cansado. Com a tormenta pode ele, mas só depois de curar. Mas nisto, o pior de tudo, é sempre as feridas voltarem.

Tudo o que sei dizer é que o caminho é decerto estreito e muito duro. Que não passa pela ilusão materialista. E que há de o forçar, com quem quiser avançar.

E terminemos, por agora, sem nunca perder a esperança que nos deve animar, com esta voz muito nossa, que é a própria Nação feita verso:

« Dá o sopro, a aragem - ou desgraça ou ânsia -
Com que a chamma do esforço se remoça,
E outra vez conquistemos a Distancia -
Do mar ou outra, mas que seja nossa! »

Francisco Cabral de Moncada