quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

SEM AGENDA



Léon Krier e a Modernidade da Arquitectura Tradicional (Parte I)
Estas linhas foram publicadas em 2004 no Boletim e no sítio electrónico do grupo universitário Arautos d’El-Rei, de Coimbra, assim como no jornal O Dia. Por manterem hoje, a meu ver, a mesma actualidade, achei por bem reproduzi-las aqui na integra, divididas em duas partes.

O aspecto caótico de muitas paisagens e cidades; a tristeza, o tédio ou a insegurança dos antigos centros desertificados ou das periferias irreconhecíveis, deprimentes ou selváticas; a indigência ou arbitrariedade arquitectónicas e a má qualidade da maioria das novas construções desde há mais de cinquenta anos; a dificuldade constante das deslocações entre casa, trabalho e lazer, com desperdício sistemático de tempo, energia e saúde - eis alguns dos mais penosos e persistentes efeitos da nossa civilização industrial na sua feição actual.

Apesar do aparente conformismo geral, muitos e cada vez mais se inquietam e justamente indignam, não só por não vislumbrarem sinais decisivos de correcção, mas também por não acharem acesso a informação esclarecedora das verdadeiras causas destas desordens.

Léon Krier, arquitecto luxemburguês nascido em 1946, conhecido internacionalmente como renovador de uma arquitectura e urbanismo tradicionais, diz-nos que esses e outros fracassos não são uma fatalidade, nem acham justificação no laissez faire; são sim a …«materialização de uma ideologia errada de planificação» (produtora do ‘zoning monofuncional’) e, ao nível da teoria da arquitectura e no vazio deixado da falência geral das doutrinas modernistas (funcionalismo, racionalismo, construtivismo, utilitarismo), o resultado da aplicação dogmática de um conjunto de teorias pessoais e “experimentalistas” pós-modernistas (a incerteza, a ironia, a desconstrução, a ruptura, a descontinuidade, o substituível) …«opostas a todo o pensamento lógico e explícito».

A edição do seu livro Arquitectura : Escolha ou Fatalidade (1) constitui sem dúvida uma rica e saudável lufada de ar fresco no nosso abafado meio cultural. Este, na aparência, tem vindo a respirá-la em profundo silêncio...

Nesta obra o autor identifica e mostra à evidência a natureza daqueles erros e dogmas. Com uma linguagem clara e num estilo sereno mas intencional, a que não falta o humor, e recorrendo a cada passo a uma notável série de desenhos demonstrativos, é contraposta toda uma teoria da arquitectura e do urbanismo, que se quer firmada e amadurecida na História e na consideração de que os imperativos de transformação do ambiente natural e cultural devem ser compatíveis com um projecto ecológico contextual (filosófico, técnico, cultural, moral, económico e estético). Essa teoria tem sido posta em prática, já desde há alguns anos, na construção de grandes projectos de diferentes autores e iniciativa sobretudo privada, em diversos países da Europa e nos Estados Unidos.

De sua autoria é o projecto, em construção, da nova cidade de Poundbury, no Dorset, Inglaterra, promovida pelo Príncipe Carlos. Entre nós, é de salientar que foi consultor na ampliação do Museu de Arqueologia de S. Miguel de Odrinhas, no concelho de Sintra, junto a capela medieval, que tanto nos surpreende na sua aparência de mini-cidade articulada em singela unidade e perfeita integração.

Para Krier, a popularidade evidente dos modelos da arquitectura tradicional não é devida à sua antiguidade nem somente à sua beleza, mas à …«perpetuidade da sua modernidade», tomada esta na sua correcta acepção cronológica e não ideológica. Isso significa a posse de um conjunto equilibrado de valores que não caducam com o passar dos tempos, reunidos afinal na tríade vitruviana: Venustas, Firmitas, Utilitas. (2)

Ao deplorar a miscelânea de estilos como falso pluralismo arquitectónico, atrasado de muitos anos do pluralismo político (onde este razoavelmente funciona, dir-se-ia), e constatar que …«os edifícios modernistas só excepcionalmente revelam capacidade de integração com a arquitectura dos centros históricos», o mesmo autor defende que as diferentes visões se possam expressar na produção de uma ...«pluralidade de cidades e aldeias extremamente diferentes na sua estrutura, na sua arquitectura e na sua densidade».

(1) Krier, Léon - Arquitectura : Escolha ou Fatalidade. Editora ESTAR, Lisboa, 1999. Tradução de António Sérgio Rosa de Carvalho. Desenhos do autor.
(2) Marcus Vitruvius Pollio, arquitecto romano do séc. I aC, autor do tratado ‘De Arquitectura’.

Francisco Cabral de Moncada