quarta-feira, 2 de março de 2011

SEM AGENDA


A Necessidade do Ornamento em Arquitectura
Gostos não se discutem? O ornamento, em arquitectura, é desnecessário, inconveniente ou até "criminoso"?
Nikos Salingaros, Professor da Universidade do Texas, em San Antonio, responde não a estas perguntas, e explica porquê. Visto hoje em dia como uma autoridade mundial da teoria do urbanismo e da arquitectura, tem derivado regras que subjazem a uma arquitectura «viva» e genuína e que dão suporte, sem simplesmente copiá-la, à melhor arquitectura do passado. Muito controverso, por ser contrário ao que é promovido pelos arquitectos e críticos da moda, os resultados que apresenta são no entanto verificáveis, vindo como vêm das áreas da matemática e das ciências. Os seus livros «Principles of Urban Structure» e «A Theory of Arquitecture», entre outros, oferecem as bases para uma abordagem completamente nova à arte e à ciência de ordenar o ambiente construído. O que se segue agora são alguns trechos seleccionados e traduzidos daquele seu segundo livro, extraídos do capítulo «Hierarchical Cooperation in Arquitecture, and the Mathematical Necessity for Ornament».
«Nos começos da década de 20, a preferência por sólidos platónicos desornamentados - tais como cubos, triângulos, esferas, etc. - foi estabelecido como um dos princípios da nova arquitectura (Le Corbusier, 1927). Muitas pessoas desse tempo presumiram que as formas regulares estão de algum modo incrustadas na consciência humana, de tal forma que a mente está programada para as preferir. Sabemos agora que isso é falso (Bonta, 1979). Os seres humanos têm de ser treinados para reconhecer os sólidos platónicos, que são um conceito puramente intelectual (Fischler and Firschein, 1987; Zeeman, 1962). O que existe na consciência humana é um mecanismo de reconhecimento baseado em subdivisões hierárquicas, sem relação com a forma global da estrutura.
(...) Os sistemas naturais complexos, tanto os biológicos como os inanimados, têm uma estrutura hierárquica (Simon, 1962; Smith, 1969). A maior parte dos materiais inorgânicos são cristalinos, e alguns são amorfos. As tensões nos materiais criam fracturas visíveis segundo padrões regulares, evitando assim que uma ordenação extensa se desenvolva em formas macroscópicas (Smith, 1969). A lisura e a uniformidade são algo de estranho nos materiais naturais. Na natureza as características estruturais existem em diferentes níveis de escala, do macroscópico ao microscópico e por todas as escalas intermédias. O que vemos são formas físicas possuindo uma escala hierárquica em resultado de forças internas e externas.
As formas biológicas também exibem uma escala hierárquica definida. Por ordem decrescente de tamanho existem comunidades de organismos, organismos, orgãos, tecidos, células, organelos, membranas, moléculas, átomos e partículas elementares, com muitas possíveis escalas intermediárias destes (Miller, 1978; Passioura, 1979). A diferentes tamanhos, as unidades estruturalmente coerentes definem uma escala. O mesmo é verdade para as formas construídas. As escalas arquitectónicas são definidas por unidades similares e do mesmo tamanho que se repetem. Num edifício, são geradas escalas independentes a partir dos materiais, da estrutura e das funções, que expressam as ideias de um arquitecto.
Entre os métodos usados ao longo da história da arquitectura para definir escalas encontram-se a simetria, manifestada através da forma, a fenestração e as colunas. Por exemplo as janelas - se forem do mesmo tamanho - criam uma escala distinta, e podem repetir-se segundo um padrão simétrico para definir uma escala maior. A subdivisão dos vidros de uma janela cria uma escala menor. O volume das construções e dos monumentos definem a maior escala exterior. As colunatas definem várias escalas: o diâmetro da coluna, o espaço inter-colunar e a base e capitel da coluna (com as caneluras, quando as há, a gerar ainda uma escala mais pequena). As escalas interiores são criadas pelas caixilharias das portas e janelas, os rodapés e os elementos decorativos em vários tamanhos, com auxílio do contraste nos materiais, na textura das superfícies e na cor.
As componentes de um projecto cooperam quando uma característica distintiva as liga visualmente, no caso de pertencerem a uma parte comum do projecto, e se apresentam textura e cor similares. Embora os métodos projectuais existentes possam organizar os materiais numa certa escala, não há uma teoria geral de como espaçar as escalas entre si nem de como correlacionar as diferentes escalas, E no entanto, a maior parte das criações humanas anteriores ao século XX (espaços urbanos, edifícios, obras de arte, artefactos, ferramentas e máquinas) são hierarquicamente integradas. Elas alcançam um equilíbrio entre os diferentes componentes, de acordo com os seus tamanhos. O nosso objectivo é modelar este processo em termos científicos para que possa ser aplicado consciente e deliberadamente.
(...) Exemplo C. Praça de S. Marcos, Veneza. Este é um dos mais fantásticos espaços urbanos ao ar livre em todo o mundo. Já foi diagramado, replicado, mas o seu sucesso ainda não é completamente entendido. Propomos aqui uma explicação hierárquica. Cada edifício do seu entorno tem subdivisões de cerca de 1/3 do seu tamanho total, e subdivisões adicionais de cerca de 1/7, 1/20, etc. De todas as direcções é evidente uma pormenorização ricamente articulada. A própria praça encontra-se subdividida pelo emprego de pavimentação contrastada (Moughtin, et al., 1995). Cada edifício é hierarquicamente coerente, e as hierarquias individuais claramente definidas ligam-se através do espaço para criar um todo coerente. São as subdivisões, ou escalas arquitectónicas, dos edifícios dispares e visualmente dissimilares à volta da praça, que cooperam uns com os outros e com o pavimento para nos fazer experimentar este espaço como um conjunto magnífico.
Exemplo D. Grand Arche de la Défense, Paris. O pavimento em frente ou dentro do arco não se relaciona com nenhuma outra estrutura, ou pela partilha de uma escala ou por similaridade, porque não possui caracterização mínima nem subdivisões. O próprio arco tem muito poucas escalas distintas... No conjunto, a deliberada carência de hierarquia conduz à "fraqueza" das partes para a união do todo, apesar da sua simplicidade estudada. A estrutura é de tal forma grande que se impõe, é monumental, e em certas condições de tempo, é excitante; contudo, toda a gama das escalas humanas está em falta. O observador não pode evitar sentir-se isolado. As subdivisões hierárquicas são buscadas em vão. A estrutura foi feita para impressionar e intimidar, mas não para se relacionar com seres humanos.
(...) Um arquitecto é intuitivamente levado a adoptar uma forma despojada pelo desejo de exprimir um sólido platónico no seu estado mais puro; ou meramente para construir barato. Isso gera uma fonte de ansiedade e desconforto. Eliminar a cooperação hierárquica de um ambiente altera-o de uma forma fundamental e afecta o estado emocional e físico das pessoas nesse ambiente. (...) A maior parte dos arquitectos contemporâneos copiam imagens que definem um estilo particular, evitando para tal a obtenção da hierarquia integrada típica das estruturas naturais. Isto é obtido através de três diferentes métodos, que podem resumir-se da seguinte forma: (a) Um lacuna excessiva entre escalas; ...(b) Eliminação das escalas menores; ... (c) Escalas demasiado próximas.
(...) Tendo definido os diferentes níveis de escala de uma estrutura, estabeleceremos agora um meio de estudar a sua interdependência. (...) O complexo todo representa algo não encontrado apenas nas suas partes isoladas. Há uma hierarquia que liga as diferentes unidades de maneiras não alcançáveis por estas, separadamente. Quando as unidades de uma escala se combinam para formar a escala imediatamente superior, emerge uma nova e por vezes inesperada componente da estrutura total; isto é designado uma "propriedade emergente" (Kauffman, 1995; Miller, 1978). Essas unidades combinam-se em algo novo, inexplicado pela escala menor. Um todo mais abrangente inclui os contributos de todas as escalas menores, acrescentando ao mesmo tempo o seu próprio princípio organizador. (...) A presente comunicação defende que as maiores realizações arquitectónicas são de facto caracterizadas por propriedades emergentes. (...) Uma regra fundamental que governa todas as estruturas complexas, orgânicas ou mecânicas, é que todas as escalas menores são necessárias ao funcionamento das maiores. Na fisiologia vegetal, isto explica o efeito de um herbicida (Passioura, 1979). Um químico bloqueia o funcionamento de uma escala menor, e isso basta para sabotar (e matar) o organismo.
(...) Se eliminarmos alguma escala arquitectónica para a qual não encontramos nenhuma justificação funcional óbvia, estaremos a negar a coerência da estrutura como um todo. Há um intervalo de escalas, contudo, que é dificilmente justificável do ponto de vista dos requerimentos funcionais. São as escalas entre os 30 cm e os 3 mm, que estão presentes em todas as arquitecturas tradicionais como ornamento (Alexander, et al., 1977). E no entanto, essas escalas - percepcionadas como visualmente e emocionalmente correctas no seu contexto original criativo - são necessárias por forma a que os complexos sistemas que são obra do homem alcancem as propriedades emergentes que lhes dão coerência.»
Francisco Cabral de Moncada