quarta-feira, 6 de abril de 2011

SEM AGENDA

Da Democracia e suas Formas (Parte II -- Os valores da democracia)

O texto que se segue é a continuação da transcrição de uma parte representativa do ensaio Problemas de Filosofia Política: Estado -- Democracia -- Liberalismo -- Comunismo, Arménio Amado Editor, Coimbra, 1963, por Luís Cabral de Moncada (1888 - 1974). A Parte I -- Posição do problema; A ideia de democracia, dessa transcrição, foi aqui apresentada na semana passada.

...«Quando se fala em valor, valores, podemos entender por este conceito duas coisas muito diferentes. Ou entendemos por ele os valores ou fins valiosos (άξιοι) histórica e sociologicamente desejados e procurados pelos homens nas diferentes fases da sua vida espiritual (hic et nunc), ou seja, numa linguagem hegeliana, culturalmente objectivos e objectivados; ou entendemos por tal conceito aqueles valores que numa outra visão, já suprahistórica e transcendente das coisas (na visão também hegeliana dum «espírito absoluto») julgamos deverem ser incondicionalmente desejados e procurados por nós (ubique, nunc et semper). No primeiro caso encontramo-nos diante dum problema de antropologia ou sociologia culturais, ou, se quisermos, de filosofia da cultura. No segundo, encontrar-nos-emos diante dum problema de filosofia pura, de axiologia pura, e até de metafísica. O primeiro será um problema histórico de valorações, o segundo, da pura essência do valioso. Ora, dependendo sempre a solução deste segundo problema (se dermos à expressão valor o segundo sentido) dos sistemas filosóficos de ideias, das crenças e concepções-do-mundo de cada um, tomaremos aqui a dita expressão só no primeiro, ou seja, no sentido histórico. E a pergunta será então, agora, esta: -- que valores ou fins humanos sociais como supremos, que últimos ideais -- valham eles o que valerem -- se têm procurado alcançar em todos os tempos quando os homens falam em democracia? Para que tem esta servido até hoje no domínio da existência política e ético-política dos homens quando contemplamos essa existência numa simples perspectiva histórica? Porque se afadigam eles tanto em cata da democracia? Parece-nos evidente que, mesmo para aqueles que se mantêm negativistas ou cépticos perante toda a Filosofia dos valores, quando considerados estes como absolutos, o problema assim posto, como problema de valorações historicamente dadas, não pode deixar de se julgar legítimo.

As respostas às perguntas que acabamos de fazer têm sido, como se sabe, nos mais diferentes tempos, assaz diferentes. A diferença provém, por assim dizer, da vária acentuação tónica que pusermos no conceito de democracia: na frase formada pelo complexo conjunto de finalidades e valores que nela se têm em vista. Assim, podem uns dizer, como já se tem dito -- e estão no seu pleno direito de o dizer -- que o valor e fim mais alto da democracia é a liberdade individual dos cidadãos. Haja em vista LOCKE e a clássica democracia anglo-saxónica. É o Liberalismo. Podem outros dizer, com não menos direito, que esse valor e fim mais alto duma tal forma de Estado está e deve estar antes na igualdade e fraternidade de todos os homens. Teremos então o igualitarismo: ou simplesmente formal, jurídico e político (Revolução francesa), ou económico e social (Socialismo das mais diversas formas e matizes). Ou ainda outros, em terceiro lugar, dizer que tal fim e valor devem, acima de tudo, ser vistos na soberania omnímoda do povo de qualquer modo entendido, mesmo que representado por um partido único e tida tal soberania sem limites como um fim-em-si-mesmo (totalitarismo democrático das mais diversas cores, fascista ou soviético). Voltaremos mais tarde a falar de tudo isto.

Seja, porém, como for, o indiscutível é que existe no fundo de todas estas diferentes maneiras de acentuar a palavra democracia um elemento, um étimo, comum. Qualquer que tenha sido a ideologia ao serviço da qual a democracia tantas vezes se tem colocado, degenerando umas vezes em demagogia, outras em oligarquia, e até outras em tirania, uma coisa contudo é certa. Antes disso, foi sempre a ideia dum bem comum e da utilidade do maior número de cidadãos, como fim mais valioso -- só julgado garantido com a participação do povo no governo, na fórmula de PÉRICLES -- que constituiu o sentido profundo e o ethos da democracia. A demofilia, o demoísmo, o amor do povo acima de tudo, como princípio activo de toda a sua vida política, inspirador duma sua sempre crescente autonomia imanente, é que constituem a verdadeira essência da democracia.

Mas não só isso. Se prescrutarmos as coisas algo mais em profundidade, voltando a fazer igualmente aqui um pouco de análise fenomenológica, só em busca de ideias, não tardaremos em descobrir aí também, na mais íntima ideia desse primeiro fim valioso, um outro: o do respeito e amor pela própria pessoa do homem. Quer na democracia prevaleça a paixão da liberdade quer a da igualdade, o respeito em princípio, pela pessoa do homem e o amor fraterno de todos os homens foram sempre, nas construções especulativas do seu mundo de ideias e sentimentos, a arquitrave dessa forma de Estado. Foi isso sempre aquilo que a democracia balbuciou e quis dizer na sua. Ela foi sempre como ideia, cem-por-cento personalista. Os seus grandes teóricos, desde os gregos até LOCKE e ROUSSEAU (1), sem esquecer HOBBES (2) -- aliás este, embora só por equívoco, o pai do totalitarismo moderno -- partiram daí.»...«Cremos, inclusive, poder afirmar-se sem receio de paradoxo, que nunca a liberdade foi dada como mais alto fim da democracia senão na esperança dum seu bom uso por parte de todos os homens, em prol do bem comum; como, tão pouco, jamais a igualdade foi alguma vez proclamada fim supremo da democracia senão na esperança também de, reconhecida a igual dignidade racional de todos os homens -- conforme já ensinavam os estóicos -- eles saberem ao fim amar-se e respeitar-se uns aos outros, segundo do mesmo modo viria a ensinar mais tarde o humanismo cristão. E daí, destes pressupostos axiológicos e fins implícitos neles, até ao reconhecimento do direito de todos os cidadãos, de serem chamados a intervir e participar no governo da cidade, e do dever dos governantes de os ouvir, não ia logicamente senão um passo. E esse passo, conquanto até hoje nunca bem sucedido, tem-se farto de o tentar a história.»

«Não curemos de saber imediatamente, depois disto, como é que na realidade os factos se têm comportado diante das ideias; nem, muito menos, se tal axiologia ou ordem de valores está certa; nem se ela constitui uma verdade ética em si mesma, no sentido de qualquer Direito natural ou concepção do mundo de tendências absolutistas. Não indaguemos agora se porventura não haverá outras escalas de valores, outras axiologias, que deveriam preferir-se-lhe. Numa palavra: deixemos a questão de saber se as coisas, assim como são, devam também ser, ou ser assim. Contentemo-nos com verificar, por agora, visto que só isso neste momento nos interessa, que as coisas, olhadas do nosso ponto de vista, ideal e historicamente, assim são e sempre assim foram e que, portanto, também aqui nihil sub sole novi. Continuamos a mover-nos na ordem dos factos e só dos factos, mesmo que estes sejam factos puramente históricos. Se este ponto de vista com a sua distinção não forem compreendidos, todas as nossas considerações resultarão sofísticas e obscuras.

E dentro deste mesmo espírito -- também sem sair da ordem dos factos -- permita-se-nos verificar uma última coisa. Queremos referir-nos ainda à existência de uma como que lei histórica. Esta diz-nos que, quanto mais elevado for o nível de civilização e cultura dos povos, mais aquela finalidade e o seu respectivo sistema de valores personalistas, expressos ou recônditos, por esta ou aquela maneira, através destes ou aqueles meios, parece dominá-los e eles parecem encaminhar-se para novas expressões de democracia. Este facto tem na história da cultura, pelo menos da cultura ocidental e cristã, a maior importância. Esta, com efeito, já tem sido definida, com razão, como a marcha da liberdade através da história (HEGEL), ou como a constante e progressiva consciencialização da dignidade da pessoa humana. Vista deste modo, a democracia parece ser para as nações civilizadas do Ocidente um verdadeiro destino. Inclusive, escritores tão pouco propensos à democracia e ao liberalismo como o espanhol CALVO SERER não hesitam em reconhecer que uma representação dos governados no governo e o seu diálogo com os governantes, como condição de aquele poder ser um bom governo, constitui uma das ideias básicas do Ocidente. (3)

É preciso ser cego ou fechar os olhos à realidade para não ver que a tendência para qualquer forma de democracia, seja ela qual for, constitui um ponto alto a marcar a vida política dos povos europeus, através de toda a série das suas oscilações mais ou menos dolorosas, um norte magnético, como o da agulha. Todas as baixas e depressões desta última serão sempre episódicas e fugazes, tanto no bom como no mau tempo; só o norte permanece inalterável. Neste sentido, quase poderia afirmar-se pertencer a democracia à própria «essência do político», a tal ponto que não seria fácil para nós determinar onde estão os Estados absolutamente não-democráticos, isto é, dizer quais aqueles que nos não apresentam na história da Europa qualquer expressão de democracia.

Mas neste momento façamos de novo a pergunta socrática já antes feita. Encarado assim este segundo aspecto do problema, o axiológico dos valores supremos historicamente dados e objectivados, será lícito neste contexto falar também de crise da democracia?

É evidente que não. Os fins e valores-cúspide que, como vimos, caracterizam esta forma de Estado, reduzidos à sua mais pura e simples expressão ético-teórica, são tão insusceptíveis de crise como a própria ideia de democracia de qual rigorosamente fazem parte. Não pode admitir-se que o amor dos homens pela liberdade e pela igualdade no respeito que lhes é devido, afora nos regimes totalitários, como ideia e como sentimento, possa jamais vir a achar-se em crise.

O caso já, porém, mudará de figura e haverá então lugar para falar de muitas crises, se abordarmos agora o último aspecto do problema a que acima chamamos o político: o das formas episódicas da democracia, o dos avatares desta ideia; isto é, o das várias democracias históricas, ao transitarmos do domínio da essência para o da existência, ou seja, da filosofia para a história.» L. Cabral de Moncada

(1) Sobre ROUSSEAU, neste aspecto, ver nossa Filosofia do Direito e do Estado, vol. I, segunda edição, pág. 223 e segs.

(2) Relativamente a HOBBES, ver CARL SCHMITT, Der Leviathan in der Staatslehre des T. Hobbes (1938), e PAULO MEREA, Suarez, Grócio e Hobbes (1941). Sobre os equívocos de HOBBES, um individualista liberal tornado totalitário, cfr. ainda a nossa Filos. do Dir. e do Estado, pág 165 e seg.

(3) CALVO SERER, La aproximación de los neoliberales a la actitud tradicional, Madrid, 1956 (ed. O crece o muere), pág. 29.

Francisco Cabral de Moncada