quarta-feira, 8 de junho de 2011

SEM AGENDA




Roger Scruton -- As Vantagens do Pessimismo


«O mundo é, de facto, um lugar muito melhor do que os optimistas permitem:
e é por isso que é preciso o pessimismo»

Trago hoje aqui o polémico filósofo e escritor conservador inglês Roger Scruton, nascido em 1944, e a tradução portuguesa da sua recente e, a meu ver, notável obra As Vantagens do Pessimismo, acabada de aparecer nas livrarias. Julgo-a notável, não só pelo tema em si -- que raramente é abordado na nossa praça, e que é claramente um assunto contra-corrente relativamente ao ambiente mental "politicamente correcto" em que vimos vivendo -- mas também pelo muito que julgo conter de verdade, apresentada e exemplificada de forma clara e convincente. Diria, parece-me que sem grande risco de me enganar, que estaremos em presença, de certo ângulo, dos resultados como que de um TAC, da natureza humana.

Logo no Prefácio o autor explica o seu objecto nos seguintes termos: «Neste livro examino o optimismo naquela a que Shopenhauer chamou a sua forma «perversa» ou «inescrupulosa» (bedenkenlos) e mostro o lugar do pessimismo na restituição do equilíbrio e do bom senso à condução dos assuntos humanos. Não acompanho a melancolia global de Schopenhauer nem a filosofia da renúncia que dela derivou. Não tenho dúvidas de que S. Paulo tinha razão em recomendar fé, esperança e amor (agape) como as virtudes que orientam a vida para o bem-estar maior. Mas também não tenho dúvidas de que a esperança, desligada da fé e sem ser mitigada pela evidência da História, é uma coisa perigosa e que ameaça não só os que a abraçam, mas também todos os que estão ao alcance das suas ilusões.»

...«A minha preocupação, em primeiro lugar, é com certas falácias que parecem justificar a esperança, ou pelo menos tornar o desapontamento suportável. Os meus exemplos vêm de muitas áreas mas partilham uma característica comum, que é mostrarem, no cerne da visão inescrupulosa do optimista, um erro tão ofuscantemente óbvio que só uma pessoa controlada pela auto-ilusão poderia ignorá-lo. É contra essa auto-ilusão que se dirige o pessimismo. Um estudo dos usos do pessimismo revelará uma característica muito interessante da natureza humana, que é a de os erros óbvios serem os mais difíceis de rectificar. Podem envolver erros de raciocínio; mas a sua causa é mais profunda do que a razão, em necessidades emocionais que se defenderão com todas as armas para firmar o conforto das suas ilusões facilmente conquistadas, em vez de abrir mão dele. Um dos meus propósitos é acompanhar essas necessidades emocionais até à sua origem pré-histórica e mostrar que a civilização é sempre ameaçada de baixo por padrões de crença e de emoção que outrora podem ter sido úteis para outras espécies mas já não o são.» (o autor considera o homem pré-histórico, portanto, como uma espécie de homem distinta da actual, anterior ao período em que as comunidades humanas terão emergido «da escuridão para a consciência de si mesmas»)

A crença de que os seres humanos podem prever o futuro ou controlá-lo em seu próprio proveito não devia ter sobrevivido a uma leitura atenta da Ilíada, e ainda menos do Antigo Testamento. O facto de ter sobrevivido é uma lembrança sensata de que o debate deste livro é inteiramente fútil. Pode gostar dele e concordar com ele, mas não terá qualquer influência naqueles a quem pede contas. As irracionalidades que exploro são, como dizem os neuronerds, «inatas» no córtex humano e não serão contrariadas por uma coisa tão delicada como um debate.»

E conclui o Prefácio, mais adiante, com estas palavras: ...«o meu tema é menos a multidão enlouquecida do que o indivíduo maquinador: aquele que, perturbado pelas prescrições imperfeitas contidas no costume, no bom senso e na lei, olha para outro tipo de futuro em que esses velhos modos de compromisso já não sejam necessários. Os optimistas inescrupulosos acreditam que as dificuldades e as desordens da espécie humana podem ser vencidas por um ajustamento a grande escala: basta inventar um novo arranjo, um novo sistema, e as pessoas serão libertadas da sua prisão temporária para um reino de sucesso. Quando se trata de ajudar os outros, portanto, todos os seus esforços são postos no esquema abstracto de melhoramento humano e absolutamente nenhum na virtude pessoal que lhes poderia permitir o desempenho do pequeno papel que aos humanos é atribuído na melhoria da sorte dos seus semelhantes. A esperança, no seu quadro mental, deixa de ser uma virtude pessoal que modera as dores e os problemas, que ensina a paciência e o sacrifício e que prepara a alma para o agape. Torna-se, em vez disso, um mecanismo de transformação dos problemas em soluções e da dor em exultação ,sem fazer uma pausa para estudar a evidência acumulada da natureza humana, que nos diz que o único melhoramento que está sob o nosso controlo é o melhoramento de nós próprios.»

No primeiro Capítulo, chamado O Futuro da Primeira Pessoa, Scruton introduz a distinção essencial, recorrente ao longo de todo o livro, entre a atitude do «eu» -- não só o individual, mas igualmente e com a maior relevância, também o «eu» colectivo -- e a atitude do «nós». A liberdade, diz-nos, sendo embora um exercício do «eu», torna-se existente através do «nós», mas no entanto...«o que ao optimista parece um ganho de liberdade é visto pelo pessimista como uma perda da mesma.» E conclui:

...«A disputa entre os optimistas inescrupulosos e os distópicos não desaparecerá, mas renovar-se-á interminavelmente enquanto novos futuros ocorrerem a um e um passado renascido detiver o outro. Em todas as emergências, e em todas as mudanças que abulam velhas rotinas, os optimistas esperam virar as coisas a seu favor. Há tanta probabilidade de consultarem o passado como a de um batalhão a lutar pela vida numa cidade proteger os monumentos. Lutam para estar do lado vencedor e para encontrar o caminho para o futuro em que a luz do «eu» continue a brilhar.

A atitude do «nós», em contrapartida, é circunspecta. Vê as decisões humanas como situadas, constrangidas pelo lugar, pelo tempo e pela comunidade; pelo costume pela fé e pela lei. Incita-nos a não nos atirarmos sempre para a corrente das coisas, mas sim a ficarmos de lado e reflectir. Enfatiza restrições e fronteiras e recorda-nos a imperfeição humana e a fragilidade das comunidades reais. As suas decisões têm em conta outras pessoas e outros tempos. Nas suas deliberações, os mortos e os que ainda não nasceram têm voz equivalente à dos vivos. E a sua atitude para com aqueles que dizem «avança» e «sempre em frente» é «não te preocupes com o dia de amanhã». Não sanciona um pessimismo global, mas apenas a dose ocasional de pessimismo para moderar as esperanças que doutro modo poderiam arruinar-nos. É a voz da sabedoria num mundo de ruído. E exactamente por essa razão, ninguém a ouve.

Nos sete capítulos seguintes são examinadas com grande talento, assim julgo, outras tantas «falácias» pelas quais mais frequentemente -- assim tem mostrado a História, segundo o autor -- se tem manifestado a mente do optimista inescrupuloso e a sua típica atitude do «eu» exclusivo. Irei apenas enumerá-las, e não descrevê-las, para que o meu caro leitor possa ter o prazer de as descobrir na leitura do próprio livro. São elas:

A Falácia da Melhor das Hipóteses;

A Falácia do Nascido Livre;

A Falácia Utópica;

A Falácia da soma Zero;

A Falácia do Planeamento;

A Falácia do Espírito em Movimento;

A Falácia da Agregação.

O Capítulo nono, chamado Defesas contra a Verdade mostra como ...«em vez de seguirem as suas pegadas para descobrir as falácias que engendraram as suas crenças, os optimistas atacarão os seus críticos, muitas vezes com um veneno a que é difícil resistir. Ou voltarão aos seus esquemas e teorias com um renovado entusiasmo, dizendo que não foram suficientemente longe, que o que é necessário é mais planeamento, mais libertação, mais progresso -- e mais realizações.

...«São habitualmente usadas certas estratégias nessa acção defensiva»...«que mostram o modo como os seres humanos conspiram para evitar a verdade, sempre que a verdade exige uma mudança dolorosa das rotinas.»

Essas estratégias defensivas, descritas por Scruton, são: a inversão do ónus, a falsa perícia, a culpa transferida, o hermetismo da linguagem e a criação de bodes expiatórios.

Os três capítulos finais do livro chamam-se, respectivamente: O Nosso Passado Tribal, O Nosso Presente Civil e O Nosso Futuro Humano

Do primeiro desses saliento a seguinte passagem:...«A minha descrição da comunidade primordial...leva a uma conclusão deprimente, que é a de que as falácias que identifiquei neste livro como subjacentes às tolices do nosso tempo não são novos acrescentos ao reportório da loucura humana mas os resíduos das tentativas honestas dos nossos antepassados de endireitar as coisas. Representam processos de pensamento que foram seleccionados nas lutas de vida ou de morte de que acabaram por emergir sociedades instaladas. Daí não surpreender que hoje definam a posição por defeito a que regressa o pensamento sempre que o futuro nos pressiona com as suas reivindicações. Isto faz seguramente parte da explicação do facto por outro lado extraordinário de a perspectiva dos optimistas inescrupulosos não poder ser rectificada pela argumentação, de se rodearem de defesas impenetráveis contra a verdade e de se apropriarem de qualquer esfera de influência que esteja disponível por eles, de modo a tornarem perigoso pôr as suas ideias em causa.»

No segundo daqueles capítulos pode ler-se este trecho esclarecedor:...« A cidade entrou na alma da espécie humana e com ela uma nova perspectiva uns dos outros e dos conflitos que a concorrência trás. A cidade não é uma comunidade de irmãos: não é uma tribo nem um clã, mas um povoado e se se dividir em duas partes, elas definem-se como freguesias ou paróquias, como as contrade que competem no Pálio de Siena, ou como os ofícios e as corporações, retratados de modo festivo por Wagner no último acto de Os Mestres Cantores de Nuremberga. A cidade é uma comunidade de vizinhos que não se conhecem necessariamente uns aos outros mas cujas obrigações vêm da fixação...A cidade é o símbolo e a realização de uma nova forma de racionalidade que emerge quando o caminho da tribo fica para trás.»

Finalmente, sobre o nosso futuro humano, estão entre as linhas finais do livro as seguintes palavras, que não deixam de ser inquietantes para o nosso destino humano:...«Os transumanistas mostram-nos um futuro que é «necessário», um destino determinado pelo espírito em movimento do progresso científico. Ignorar esse futuro não é resistir-lhe, mas dedicar os limitados recursos do nosso raciocínio às únicas coisas em que podem ser aplicados com êxito, que são realidades presentes e as pessoas nelas contidas.» Roger Scruton

Francisco Cabral de Moncada