quarta-feira, 22 de junho de 2011

SEM AGENDA




As Semanas de Estudos Doutrinários -- Coimbra, 1959 e 1960 (Parte II)


Completo hoje a rememoração, ou revelação, já aqui trazida na semana passada, das I e II Semanas de Estudos Doutrinários, realizadas em 1959 e 1960, em Coimbra, que pretenderam ser, naqueles anos, um forum de reflexão tendo em vista «... a estruturação de um corpo doutrinário moderno que se ajustasse à realidade portuguesa...» e, em particular, um ponto da situação, ou actualização, do pensamento monárquico nacional. A selecção de textos seguinte reporta-se à tese apresentada a discussão no dia 27 de Março de 1960 pelo Dr. Mário Saraiva, integrada na referida II Semana, aberta a 24, e publicada no respectivo volume de discursos, teses e intervenções (págs. 159 a 182). Escolhi esta discussão, entre um punhado de várias outras de elevado interesse e valor, por me parecer que nela é evidenciada a importância central da questão da natureza da representação nacional, em monarquia, e a necessidade de começar por definir, para a construção do sistema político monárquico, quais os fins da assembleia, ou assembleias a criar, como noutra ocasião do mesmo dia sublinhou o Prof. José Bayolo Pacheco de Amorim (pág. 307) -- Legislativas? Em que medida? Como meio de acesso ao poder, ou não? Na discussão desta tese do Dr. Mário Saraiva, parecem desenhar-se, penso, embora por forma nem sempre nítida, mais do que um ponto de vista a este respeito. E parece-me, também, que, hoje ainda, e pelo menos para uma parte dos que se dizem monárquicos, a mesma questão continua em aberto.

Sobre o papel político do Rei, segundo Mário Saraiva, consulte-se também em particular o seu texto denominado Entre o Liberalismo e o Absolutismo, aqui também já apresentado.

As Semanas de Estudos Doutrinários de Coimbra estavam pensadas para continuar nos anos seguintes, tendo já sido programadas a III e a IV. Contudo, as vicissitudes da vida nacional sobrepuseram-se à oportunidade da sua realização, levando ao seu adiamento sine dies. Foi no dia 13 de Abril de 1961, data prevista para a abertura da III Semana, que as nossas forças de defesa foram mandadas «...para Angola, rapidamente e em força!»

COORDENADAS DO PODER REAL, por Mário Saraiva (8.ª reunião de trabalho, 27-03-60)

« (...) Mas se governar implica legislar e não se distingue de administrar, eu interrogo ainda: se o rei governasse, onde ficariam as liberdades do povo, de que ele, fora do governo, é o garante? (...) Em que dados concretos elas se exprimiriam se ao povo coubesse apenas o dever de obediência?

«Nós somos livres e o nosso rei é livre».

A este eco vivificante da tradição que vem reflectido de época em época, desde os primórdios da nossa nacionalidade, encontremos a fórmula adequada ao mundo novo que está em gestação! (...) A maior virtude, e que é privilégio da realeza, é este mesmo: a máxima capacidade de representação nacional. (...) A todo o custo devemos defendê-la e salvaguardá-la. (...) Não pretendendo sair das linhas gerais da doutrina vou concluir enunciando alguns pontos de resumo e de conclusão:

-- Apenas em monarquia, no rei, coincide a chefatura do Estado com a representação da Nação.
-- O rei é, por virtude de sucessão hereditária, a personificação natural da unidade nacional.
-- Em consequência da sua independência de origem, cabe ao rei o poder arbitral, o qual não tem condições propícias ou viáveis em república.
-- Como o rei diminui ou perde esses atributos se exercer o governo, não deve governar.
-- Acima do governo, como a Nação hierarquicamente é acima do Estado, ao rei incumbe a missão de «fiscal atento e independente das direcções governativas».
-- Assistido por um Conselho de Estado, orientado pelos órgãos de deputação nacional, em contacto com o povo, o Rei, com todo o poder nacional e real em potência, supragoverna.
-- O governo corrente será exercido por um ministério responsável.
-- O rei será o chefe nato das forças armadas nacionais.
-- O funcionamento de um Tribunal de Garantias Constitucionais prevenirá as possíveis exorbitâncias do governo, cobertas pelo monarca, ou do próprio monarca.»

Intervenções a esta tese: (nota: para além das duas intervenções que a seguir parcialmente se transcrevem, intervieram ainda o Dr. Afonso Botelho, o Dr. A. de Sousa Machado e o Sr. Baltazar Gonçalves)

Do Sr. Prof. Doutor A. Jacinto Ferreira: -- (...) A fórmula «o rei governa, mas não administra» é aquela que mais escola tem feito nas hostes monárquicas, depois que o Integralismo lançou os seus ataques, mas não há dúvida nenhuma de que, até agora, se perguntarem aos monárquicos como é que o rei governaria sem administrar, dificilmente haverá alguém com responsabilidade, capaz de esclarecer as inteligências. (...) Quero, por consequência, dizer que um dos pontos que nestas Semanas de Estudos Doutrinários tem que ser tratado, é este que o Sr. Dr. Mário Saraiva veio tratar: estabelecer os limites, as normas que hão-de reger o governo do rei, que hão-de reger a actuação das assembleias e que hão-de reger a vida dos conselhos, etc.; quer dizer, a estruturação daquela organização, daquela orgânica esboçada, mas que ainda está longe de estar constituída, pelo menos em tese, até mesmo em tese. (...)

Do Sr. Dr. F. Sousa Tavares: -- (...) O Sr. Dr. Mário Saraiva pôs o dedo na ferida: o rei não pode comprometer-se nos actos do governo. (...) isto é: o rei não pode ter a responsabilidade da administração porque, se a tiver, é inevitavelmente o objecto n.º 1 de todas as críticas que se façam à administração e à acção do governo. (...) Inteiramente de acordo. Simplesmente, não vi formulado pelo Dr. Mário Saraiva a solução do problema. Como resolvê-lo? Dizendo simplesmente que «o rei não governa»? (...) Se o rei é responsável pela constituição do Executivo, o rei é responsável pelos actos desse Executivo e, portanto, será sempre responsabilizado, perante a nação e perante a política, pelo conteúdo do acto político. (...) o desprestígio da coroa, na monarquia liberal, foi, única e simplesmente, devido à interferência do rei na mutação dos governos, aliás, porque, verdadeiramente, o liberalismo nunca existiu em Portugal como sistema de baixo para cima e sempre de cima para baixo. (...) Não se esqueçam que na eterna crítica ao liberalismo há sempre a crítica a um sistema que não funcionou na sua verdade, exactamente porque nunca houve eleitorado preparado, porque nunca houve eleições autênticas, porque nunca houve partidos autênticos, porque, portanto, o liberalismo nunca existiu em Portugal. Existiu um arremedo, nunca existiu um liberalismo autêntico. (...)

Resposta do autor:

O Sr. Dr. Mário Saraiva: -- (...) Como é que há-de ser o voto? Orgânico? Individual, por sufrágio universal? (...) O Sr. Dr. Sousa Tavares abordou a questão que, realmente, ficou aqui de pé. (...) Eu não aceito como solução dilemática nem um, nem outro voto e julgo que o assunto, só ele, mereceria uma tese na próxima Semana, assim como o do número, constituição e funções das Câmaras a dos problemas relacionados com o ministério e as atribuições e poderes do rei. (...) Far-se-ia assim o programa da monarquia, que seria o tal estabelecimento das «regras do jogo». O mais, tudo o mais, são liberdades e se resolve dentro da liberdade, que todos nós queremos, sem ter que aceitar, em bloco, um sistema ou outro. (...) A liberdade da monarquia está precisamente em poder aproveitar-se das soluções de todos os sistemas. (...) para estas Semanas, o pormenor não deve ter prioridade. Por isso, não concretizei a solução, mas apresentei o princípio: o rei não deve governar, não deve estar directamente responsabilizado pelo governo -- e quando digo governo digo administração. Deve estar acima. E porquê?

Toca-se aqui, no problema da representação nacional. Para mim, a representação nacional é muito difícil de conseguir; fica-se sempre aquém do que se quer; nunca conseguimos representar a nação, porque não é possível uma assembleia representar a sociedade de um dia, quanto mais a pátria, na sua continuidade histórica! (...) Seja qual for a constituição da Câmara, essa Câmara nunca representa a nação. Aceitemos que a Câmara pode representar a sociedade, mas fica à realeza, à dinastia, a outra parte da representação, a da continuidade histórica da pátria. (...) Ora, se ambas, Realeza e Câmara estão investidas na representação da nação e se a soberania vem da nação, temos que desdobrar esta, mas sem que haja choque. Por isso, penso assim: a Câmara terá a representação da sociedade no presente e a sociedade presente tem o direito de se administrar, de se governar, digamos assim. À Câmara, portanto, compete legislar e estar directamente ligada à responsabilidade do governo e ligada, portanto, ao Ministério. (...) Mas a outra parte da soberania, sem dúvida superior, está no rei, que é a pátria, sempre. (...) Ora bem. A Câmara teria a soberania em acção, digamos uma soberania na esfera administrativa; mas o rei que representa para além da nação, não só a nação, mas a pátria, que representa o todo, então, também, teria a soberania em potência, que passaria a acção, quando fosse necessário. (...) O ministério governa com o apoio da Câmara, com um apoio que pode não ser total, mas todavia um apoio por maioria, um apoio legal. (...) Essa maioria em certo momento pode estar em desacordo com o interesse nacional, estar em desacordo, até, com a opinião pública. Nestas circunstâncias, a soberania potencial do rei passa à acção e dissolve a Câmara com o mesmo poder com que demite o ministério.

Eu não sei se o Sr. Dr. Sousa Tavares que fez à pouco uma pergunta sobre o poder executivo, sobre como é que eu responsabilizava o rei pelo poder executivo...

O Sr. Dr. Sousa Tavares: -- A minha pergunta era esta: Se o rei não pode ser responsabilizado pelas coisas do governo, como condiciona as coisas do governo para que não seja responsável? E o Sr. Dr. Mário Saraiva acabou de me responder que o executivo dimana do legislativo; quer dizer, o governo terá de ser uma dimanação da vontade da Câmara. De maneira que estou perfeitamente elucidado...

O Orador: -- O rei, potencialmente, tem a supremacia, não esqueça isso...

O Sr. Dr. Sousa Tavares: -- Tem o poder de dissolver o parlamento o que foi um postulado que eu defendi ontem...

O Orador: -- Bem! Tem o poder de dissolver o parlamento, isso é claro que tem. O rei tem todos os poderes. O rei tem o poder real, que engloba em potência, o poder nacional. (...) O que eu queria era dizer o seguinte: É que como representação, a representação do rei estende-se, vai além da representação da assembleia... (...)

Encerramento pelo Sr. Presidente (Prof. Doutor Arnaldo de Miranda Barbosa):

(...) Quanto à tese do Sr. Dr. Mário Saraiva, ela constituiu uma tentativa de crítica construtiva de alguns aspectos do Integralismo Lusitano. Em grande parte, estou de acordo com as opiniões que defendeu. De acordo, pelo que respeita à tese central do seu trabalho; não tanto pelo que respeita aos esclarecimentos que, em seguida, tentou dar. (...) Eu creio -- e nisto estou de acordo com as observações do Sr. Baltazar Gonçalves -- que importa não confundir o poder pessoal do Rei, a sua acção efectivamente realizadora, com a própria Instituição Real. (...) Na verdade, nem a doutrina integralista, nem geralmente a doutrina monárquica defenderam o poder pessoal do Rei, no sentido de que é o Rei, como pessoa, como indivíduo humano, quem governa. Nem isso estaria de acordo com a realidade histórica. Nunca foi assim, desde a primeira dinastia. O Rei não fazia tudo, na acção governativa. Orientava a governação, mas não era ele quem redigia diplomas legais, nem era ele só quem governava e administrava. Era assistido por Conselhos e desde sempre rodeado de altos dignatários encarregados de desempenhar o que hoje se chama funções de governo. Com a evolução do Estado moderno, a progressiva complexidade social tornou essa diferenciação mais nítida: todos sabem que na monarquia absoluta havia secretários de Estado e até, por vezes, ministros, como sucedeu na época pombalina. Um homem a realizar tudo sozinho, a mandar em tudo, a decidir tudo, só pode imaginar-se numa sociedade muito primitiva.

Neste ponto estou de acordo com o Sr. Dr. Mário Saraiva: o Rei não pode confundir-se com um chefe de governo. Tal confusão levaria as monarquias a caírem nos defeitos das repúblicas presidencialistas, agravando-os em certos aspectos. Com efeito, se assim fosse, a doutrina monárquica apresentava uma grave dificuldade: nem todos os reis têm a garra de grandes governantes! O rei pode não ser um génio governativo, e a complexidade do governo actual não permite uma aventura. (...) Mas se neste ponto estou de acordo, quero fazer ainda uma observação. Pareceu-me que o Sr. Dr. Mário Saraiva (...) estabeleceu uma correlação entre representação orgânica e a máxima «o rei governa, mas não administra» e uma outra correlação entre sufrágio universal e a máxima «o rei reina, mas não governa». (...) Não vejo que necessariamente se tenha de estabelecer essa dupla correlação. Com efeito, a representação poderá ser orgânica e o rei nem administrar nem governar naquele sentido que o Sr. Dr. Mário Saraiva visou. (...) O ponto crucial é este: se é o rei que escolhe o governo, como é que o rei não pode ser responsável pelo governo? O Sr. Dr. Mário Saraiva inclinou-se, finalmente, para a opinião de que o governo emanava das Câmaras. Não sei se esta solução será de...

O Sr. Dr. Mário Saraiva: -- V. Ex.ª dá-me licença? É que nesse ponto não toquei, nem...

O Orador: -- Bem sei! Eu sei que não tocou na sua tese...

O Sr. Dr. Mário Saraiva: -- Isso seria para outra tese!

O Orador: -- Em todo o caso chegou a essa conclusão nas suas alegações finais. Pois bem! Se esse é um problema crucial, tudo depende dos seguintes problemas: natureza da representação nacional, formas porque se manifesta a opinião pública, limites do poder executivo em face da representação nacional... (...) Estes importantes problemas condicionam a solução daquele que o Sr. Dr. Mário Saraiva discutiu. Apresentando-o como problema bem delimitado, sem o enquadramento noutra problemática mais geral, não foi possível oferecer para ele uma solução definitiva. Mas a sua formulação já constituiu um valioso contributo.

Francisco Cabral de Moncada