quarta-feira, 6 de julho de 2011

SEM AGENDA





Portugal, hoje -- pelos Meandros da Anti-Cidade (Parte II)


Prossigo hoje a apresentação, já iniciada na semana passada, do livro Manual de Crimes Urbanísticos -- Exemplos Práticos Para Compreender os Negócios Insustentáveis da Especulação Imobiliária, do urbanista Luís Ferreira Rodrigues, recentemente editado pela Guerra & Paz, SA, recomeçando com o título referente à valorização económica de uma propriedade -- nível micro, com que termina o capítulo chamado Princípios básicos para compreender a criminalidade urbanística. Dou de seguida a palavra ao autor:

...«Tendo compreendido como o sistema de financiamento municipal se encontra vocacionado para privilegiar -- erradamente -- a construção como factor de dinamização económica, iremos analisar de seguida como é que essa dinamização se processa através da «especulação imobiliária» -- um conceito vulgarmente utilizado e que urge clarificar.

Especulação imobiliária consiste na aquisição de bens imóveis, baseada numa expectativa de rentabilização lucrativa dos mesmos a curto, médio ou longo prazo. Assim, quando qualificamos pejorativamente o conceito «especulação imobiliária», importa reter o seguinte: a especulação imobiliária pode até nem configurar crime algum. Alguém que vende um imóvel por um valor mais alto do que o comprou é, na realidade, um especulador imobiliário; no entanto, isso não faz dessa pessoa um criminoso. Se assim fosse, todos seríamos criminosos.

No mesmo sentido, o aumento da potencialidade construtiva de um terreno pode ser desejável e necessário para o desenvolvimento de um município sem que nada de imoral ou ilegal possa ser imputado a esse aumento. Ora, se os problemas da especulação imobiliária não residem no conceito em si, onde é que residem afinal? Nomeadamente nos seguintes aspectos:

1) Desproporcionalidade entre a oferta edificada gerada por uma elevada expectativa de rentabilização imobiliária e as necessidades reais do município -- se a oferta imobiliária disponível num município é maior do que a sua procura, isso significa que os imóveis existentes não estão a ser devidamente utilizados e rentabilizados. Como consequência, as baixas taxas de ocupação imobiliária apenas servem para onerar os municípios. (principalmente através de despesas de manutenção infra-estrutural. Por exemplo, quando são construídas estradas para servir um determinado loteamento habitacional, espera-se que as taxas e impostos provenientes das pessoas que irão habitar esse loteamento sirvam para mantê-lo devidamente funcional. Contudo, se poucas pessoas resolverem habitar nesse loteamento, o que é que irá manter essas estradas em boas condições? As taxas e os impostos de todos os moradores que não usufruem das mesmas. Ou seja, uma especulação imobiliária exagerada apenas serve para onerar o cidadão que nada tem a ver com ela.)

2) Distribuição injusta dos benefícios e encargos decorrentes da acção especulativa -- mercê de factores históricos, económicos e sociais, a realidade é que apenas alguns indivíduos e instituições podem lucrar desmesuradamente com a actividade imobiliária especulativa. (...)

3) Destruição ou descaracterização de valores sociais, culturais ou ambientais preexistentes -- os usos urbanos que não compreendam edificação (jardins, hortas, azinhagas, etc.) serão sempre prejudicados em detrimento da rentabilização imobiliária. Como tal, quanto maior for a expectativa de lucro decorrente de uma ocupação edificada intensa, maior será a tendência para a degradação de valores sociais, culturais e ambientais existentes.

4) Oneração económica (tanto de particulares como da Administração) provocada por uma oferta imobiliária irrealista ou inadequada -- é natural que muita gente tenha já ouvido falar da crise económica provocada pela «bolha imobiliária». Tentando resumir um assunto complexo em poucas palavras, a bolha imobiliária mais não é do que a oferta desmesurada e sobreavaliada de bens imobiliários, ou seja, imóveis em excesso que não valem o preço pelo qual foram avaliados. A especulação imobiliária pode, assim, servir apenas para produzir ficções económicas que alimentam negócios obscuros, ilícitos e onerosos para a comunidade.


Existem duas formas através das quais a especulação imobiliária pode manifestar-se: 1) na criação de edificabilidade; 2) na rentabilização de edificabilidade existente.


No que diz respeito ao primeiro ponto, qualquer promotor imobiliário se rege pelo seguinte princípio -- diríamos mesmo, pela seguinte lei:

Obter o máximo de construção no mínimo espaço de terreno.

Infelizmente, para a valorização de um terreno, não é contabilizado o número de árvores que essa propriedade possui, o número de passarinhos que lá vivem, o valor sentimental ou histórico que essa propriedade possa ter, etc. Ainda que alguns desses aspectos possam ser considerados, na cidade, o terreno mais valorizado é sempre aquele que permite mais construção. Por isso, todos os meios (legais ou ilegais) que possam ser utilizados para aumentar a potencialidade construtiva irão inevitavelmente ser utilizados pelo «proprietário racional». (...)

No que diz respeito à rentabilização da propriedade existente, a especulação imobiliária pode processar-se, não por via da maximização do potencial construtivo dessa propriedade, mas sim por via de um melhor aproveitamento ou transformação dos usos existentes.

Edifícios com usos comerciais, habitacionais ou industriais não possuem um valor semelhante; contudo, a mudança desses usos ao longo do tempo pode proporcionar uma maior rentabilização da propriedade e do imóvel. Se essa mudança ocorrer sem que as mais-valias decorrentes da mesma (assim como o estudo da relação custo/benefício para o interesse público ocasionado por essa mudança) sejam correctamente calculadas, as receitas derivadas dessa operação apenas irão beneficiar desproporcionalmente o investidor privado. O município não retirará nenhuma contra-partida desta mudança, que poderá mesmo vir a revelar-se um ónus para o interesse público a longo prazo.

Outra situação em que a utilização de um edifício pode ser manipulada para efeitos de especulação imobiliária revela-se nos critérios de avaliação que lhe estão subjacentes. (...)Vamos exemplificar.

Existe um hipotético edifício particular cuja venda ou arrendamento o seu promotor não consegue realizar pelo valor X. Assim, num caso em que não exista intervenção directa da Administração Pública, é o próprio mercado que irá «punir» o promotor pela má escolha que ele fez e pelo mau investimento que ele fez na cidade.

Contudo, a situação pode alterar-se caso esse promotor tenha alguma influência junto dos poderes públicos; como tal, irá usar da sua persuasão (de maneira legal ou ilegal) para que a Administração adquira ou arrende o edifício para determinados serviços por um valor maior que X. Esse arrendamento ou compra -- feito não por necessidade dos serviços públicos mas por puro clientelismo -- não só permitirá sustentar artificialmente um mau promotor, como servirá ainda para onerar a Administração com um mau investimento imobiliário.

Não estando os cidadãos familiarizados com noções e critérios de avaliação imobiliária, será relativamente fácil manipular essas avaliações com o intuito de apresentá-las como credíveis e científicas. No entanto, tudo se resumirá, no final, à compra ou arrendamento de gato por lebre -- em que o lesado será sempre a Administração Pública ou algum particular mais descuidado.»

No capítulo seguinte, chamado Resumo da evolução histórica dos negócios imobiliários, o autor começa essa descrição a partir dos primórdios. Chegando à actualidade, relembra que...«numa perspectiva de custo-benefício, a disponibilização de grandes estruturas edificadas para a população em geral nas grandes cidades antigas não era viável -- não só pelas questões de segurança, construção e acesso, (...) mas também por factores relacionados com o próprio contexto económico-social (os salários da generalidade da população eram diminutos, não se conhecia juridicamente a noção de propriedade horizontal, (...) e o valor de arrendamento não superava o da construção e manutenção de grandes estruturas). E acrescenta: «Hoje em dia, tudo isto se alterou, não só devido à evolução tecnológica da construção, mas principalmente em consequência da revolução económica operada por uma poderosa instituição: a banca.

Através do financiamento bancário, não só o construtor pode dispor de imediato das (grandes) verbas que lhe permitem construir um edifício, como também se torna possível ao comprador de uma fracção entregar de imediato ao construtor o valor integral do seu apartamento. Em séculos anteriores, marcados por maior mortalidade, instabilidade social constante, menor distribuição de riqueza e ausência de instituições económicas e financeiras independentes de casas nobres, reais ou clericais, um crédito à habitação por trinta anos para o cidadão comum que vivesse apenas da exploração agrícola afigurar-se-ia algo totalmente impensável.» (...)

O autor sublinha a seguir a extrema importância para o negócio imobiliário que representa a moderna tecnologia de construção, já que permitiu tornar potencialmente valioso qualquer espaço urbano onde fosse possível a construção em altura, bastando que para tal estivesse servido por uma boa rede de acessos. Ao passo que há cerca de um século os edifícios na cidade só poderiam atingir um máximo de seis pisos, hoje em dia podem ultrapassar já em muito a centena, sendo actualmente os mais altos em Portugal de vinte e sete pisos (as Torres São Rafael e São Gabriel, em Lisboa), permitindo assim gerar o aproveitamento da construção em altura mais-valias enormes.

Luís Rodrigues faz a comparação entre a valorização monetária de um depósito bancário e a proporcionada pela posse de um terreno: ao passo que no primeiro caso a valorização se resume à que resulta da taxa de juro correspondente ao valor depositado, no segundo caso, descontando impostos e despesas de conservação da propriedade, essa valorização poderá englobar três componentes -- para além da valorização inflacionária do bem em si e da eventual valorização do potencial edificável,...«se o detentor do terreno conseguir rentabilizar de forma produtiva a sua propriedade, a posse e manutenção da mesma poderá afigurar-se a longo prazo um investimento muito mais rentável, (...) por exemplo, com o seu «aproveitamento produtivo agrícola, florestal, mineiro, etc., ou arrendamento.» E conclui: « Não é por isso de estranhar que os negócios imobiliários se tenham transformado no grande eldorado do século XX. (...) A tudo isto acrescenta-se ainda a facilidade com que essa valorização pode acontecer de um dia para o outro: entrando em vigor o plano director municipal (PDM) que preveja uso urbano no terreno que antes estava classificado como de uso rural, aquilo que antes pouco valia monetariamente pode passar a valer bastante. Com um simples acto administrativo, determinado património pode valorizar-se ainda que o seu detentor nada tenha feito para isso -- ou pelo contrário, o seu proprietário poderá mesmo ter influenciado a decisão através de meios ilícitos.»

Tenciono concluir a apresentação deste livro na próxima semana com uma breve amostragem do seu capítulo mais desenvolvido, denominado Exemplos básicos e práticos da criminalidade urbanística.

Francisco Cabral de Moncada