SEM AGENDA
Sem Agenda
Deus, infinitamente bom, deu-nos a razão suficiente, e enviou-nos as revelações também suficientes, para podermos discernir -- nas verdades da Criação e, sobretudo, naquelas revelações -- a Sua verdade, isto é, a Verdade. E assim, O podermos minimamente discernir, também, a Ele. Ele próprio nos disse, afinal, que ambos eram uma e a mesma coisa. A Verdade é o que é, simplesmente. E não tem nem precisa de agenda.
As verdades todas -- mesmo as mais insondáveis, horríficas e cruéis -- são, directa ou derivadamente, as incontáveis facetas da obra divina ou do próprio Deus. E, contudo, não há dúvida que muitíssimas delas são, ou parecem ser, mais propriamente obra do Diabo... Em que ficamos, então?
Tal como Deus, o Diabo existe e actua quando quer. E quer sempre. Não sobre a Criação, em geral e directamente, que não pode, mas sobre as nossas consciências e as dos seus afins. Fora os insondáveis desígnios divinos, é pois aos actos e às consciências humanas -- imputáveis e puníveis, como ficou demonstrado desde Adão e Eva -- que devemos atribuir as causas mais próximas dos desastres e das atrocidades que nos afligem.
Mas, mesmo o Diabo não passa de uma criatura da Criação, toda esta, sem excepção, boa, de início. E, tal como a nós, mas em grau incomparavelmente superior, a esse Príncipe portentoso foi dada uma consciência e a liberdade. E, enfim, sem desprezar a nossa própria parcela de responsabilidade, enquanto humanos, o que é facto é que, por misterioso pecado, ele escolheu trilhar -- com pleno conhecimento de causa, e querendo e conseguindo, com isso, em muitíssimos casos, levar-nos, depois, com ele -- o caminho sem fim nem saída da errância eterna. Eterna para os que de nós com ele formos e, ao que se sabe, eterna também para ele.
Não era minha intenção que este texto ficasse a exibir um certo ar de sermão não encomendado mas, pelo desenvolvimento lógico da exposição, tal parece inevitável. Com efeito, perguntar-se-á: para quê vir para aqui com tudo isto? Falar da Verdade, e da Criação divina, ainda vá lá, pensarão. Mas do Diabo? Não será isso alta cavalaria a mais, a ser praticada mais competentemente pela autoridade de um Sacerdote?
Ser, seria, sou eu o primeiro a concordar. Mas a dificuldade, tal como a vejo, está precisamente naquele condicional. Porquê..., não sei francamente, mas a grande maioria dos Sacerdotes que tenho ouvido parece que foge a falar do Diabo como o Diabo da Cruz. Excepto quando é assunto em alguma leitura das Sagradas Escrituras, parece que o tema é quase tabu. Que o comum das pessoas, por intuição ou superstição, ache que falar, ou trazer à mente, sequer, a ideia do Diabo, lhes faz mal, ou dá azar, percebe-se. De facto, para quem não estiver preparado, fazê-lo sem mais nem menos pode vir a ser um pau de dois bicos. Curiosamente, até o jornal semanário com o mesmo nome -- de que sou tão só um descomprometido leitor -- que considero ser um dos raríssimos meios informativos recomendáveis da nossa praça, só é avistado de esguelha e como bizarria potencialmente perigosa por muitas das pessoas que têm conhecimento da sua existência. E isso provavelmente nem terá tanto a ver, se não estou enganado, com as suas habitualmente úteis e oportunas diabruras politicamente incorrectas. Ou, se calhar, terá... Em todo o caso, suponho que poderemos dizer que enquanto uns suspeitarão ser O Diabo um pequeno compincha, à nossa moda lusitana, do Diabo, outros, entre os quais eu me conto, vê-lo-ão antes, de facto, mais como exemplo de um inevitável e valoroso adversário do mesmo.
O Diabo é uma realidade, tal como tantas outras realidades misteriosas. Mas tê-lo em devida conta é de crucial importância para as nossas vidas e para a salvação das nossas almas. Como supremo inimigo que é da espécie humana, deve ser encarado com circunspecção, mas de frente. Não há, pois, que ter medo de querer saber ou falar dele, com quem saiba fazê-lo, o quanto baste. O que significa, antes de mais nada, saber que ele existe mesmo, e em pessoa (1). A propósito, e para quem ainda o não fez, recomendo vivamente a leitura do precioso livrinho de C. S. Lewis, The Scewtape Letters, que descreve as recomendações de um diabo veterano ao seu sobrinho aprendiz, e que teve uma versão portuguesa há poucos anos, com o título Vorazmente Teu, pela editora Grifo.
Em resumo, tudo isto, e o largo espaço de exposição que aqui concedi ao maligno -- certamente a seu contragosto -- incluindo as divagações de passagem, foi só para tentar explicar a ideia inicial, de que todas as verdades, mesmo as que se nos apresentam mais diabólicas, provêm, em última instância, do Criador de todas as coisas, o qual ofereceu a liberdade moral aos humanos e às criaturas angélicas. A liberdade para poder pecar, portanto, ou seja, escolher -- com as devidas consequências, é claro -- não seguir a sua Lei. A Verdade, princípio criador de todas as verdades celestes e terrenas, é pois um outro nome do Criador, e é só uma. O pecado, esse, é uma verdade, sim, mas derivada e adulterada. Não é imputável a Deus.
Nada mais aspirando ser, no fundo, que um humilde aprendiz da Verdade, o autor de SEM AGENDA esforçou-se sempre e apenas por tentar mostrar, e apontar, verdades -- ou as suas possíveis aproximações -- verdades do nosso tempo, de outros tempos, de todos os tempos. E, de caminho, algo da sua própria verdade, também.
Tudo o que fazemos tem o seu tempo próprio. A minha colaboração regular das quartas-feiras no ETERNAS SAUDADES DO FUTURO, iniciada em 19 de Janeiro passado, termina hoje. Ao meu nobre amigo, cunhado e anfitrião, João Marchante, quero agradecer o seu convite e incitamento iniciais, e o seu apoio constante. Um forte abraço, João!
Aos meus caríssimos e pacientes leitores e em particular aos que se me manifestaram ao longo destes mais de seis meses -- que todos comparo (à maneira de um resumido simulacro daquilo que é, ou pode ser, a nossa vida) a companheiros de uma longa e atribulada viagem sem retorno (por vezes com descanso por verdes prados ornados de vinhedos, ou matando a sede nas fontes puras de altas serranias) através de um extenso deserto: o seco deserto das verdades penosas, nesta Terra -- quero agradecer a fraterna camaradagem. Bem-hajam!
(1) Cfr., p.ex. VAZ PINTO, António, S.I., 'Revelação e Fé', 2ª Edição (revista), Editorial A.O., Braga, 2001, Vol.I, pág. 537 e segs.
Francisco Cabral de Moncada
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