sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

CARTEIRA DE SENHORA

DIA 4
Quando se diz que uma carteira de senhora não tem fundo, é porque cabe lá tudo, sendo exactamente esse o problema. A verdade é que todas têm fundo, mesmo esta, mas não há maneira de conseguir encontrar o tal texto que tinha começado. O truque é não insistir numa procura específica. Um dia o acaso trará à tona o que quero. Assim, surgiu qualquer coisa com uma pitada de crise.
De há uns tempos a esta parte que vimos ouvindo dia sim, dia não, sermões admoestadores de um senhor Silva e de muitas outras réplicas do senhor Silva, economistas na sua maioria, sobre como os portugueses têm vivido acima das suas possibilidades.
Confesso que não me tinha apercebido desse facto, e dediquei-me de coração a elaborar um estudo aprofundado sobre o assunto na parte que me diz respeito.
Os senhores Silvas até parecem videntes e deviam concorrer com os inúmeros professores de nomes vagamente africanos que prometem mil e uma salvações em minúsculos papelinhos que distribuem à porta do metropolitano. Então não é que estava mesmo a viver acima das minhas possibilidades? Esquadrinhando despesa a despesa e saltando convenientemente a linha que continha a palavra tabaco e que até pusera em pé-de-página com letra de apólice de seguro, apercebi-me que, de facto, uma determinada área da minha vida saltava à vista desarmada, em letras grandes e florescentes, como problemática: o almoço.
Almoçar fora todos os dias gastando uma média de 8 € era sem dúvida viver acima das minhas possibilidades, e como não queria mais sentir-me incluída nos tais sermões, mudei radicalmente a minha vida, como aquelas mentes que se iluminam pelos discursos inflamados de homens vulgares erigidos a profetas glorificando os seus livros de auto-ajuda agora no topo das vendas das livrarias.
Sendo funcionária pública, retomei o antigo hábito de quando a idade era boa por ser pouca mas rimava com dificuldade: ir à cantina. Nós dizemos ir à cantina, mas na verdade, o nome oficial é refeitório. Palavra comprida demais para frases que se querem curtas no aperto dos horários e cantina até lembra escola.
Aqui perto há dois lugares à escolha, um mais “chique” do que o outro, mas o preço por uma refeição completa é o mesmo, menos de metade do que pagava apenas por um prato!
Um deles é enorme, provavelmente antiga garagem transformada em cantina. Permite um almoço mais sossegado e tem uma outra vantagem: as mesas são para quatro pessoas e as cadeiras, surpresa das surpresas, são uma espécie de baloiços. Não sei descrever à moda de manual técnico, mas em termos simples, são giratórias. Como se fosse um parque infantil à mesa do almoço, uma espécie de presente para os mais velhos, com um certo sabor a brincadeira proibida, lembrando os dias em que seus pais lhes chamavam a atenção “está quieto com a cadeira!”.
Aqui são mais os reformados que vêm, alguns desde muito cedo, sentando-se na sala de entrada à espera de serem os primeiros da fila e adoram ter motivos para chamar a atenção de quem acham que lhes está a passar à frente.
Na cantina chique, mais pequena, as mesas são corridas, há mais gente e, embora também seja frequentada por velhinhos, os mais novos estão aqui em grande número, pelo que o barulho é a condizer.
Antes de ordeira e pacientemente ir para a fila do self-service, compram-se as refeições em máquinas muito evoluídas, com ecrã táctil e uma voz de senhora num metálico irritante a dar ordens: insira o seu cartão, não retire o seu cartão, efectue o pagamento, retire o cartão, retire o troco, retire o recibo. Na cantina grande, as máquinas até têm arrumador. Um senhor que ajuda quem se atrapalha com a máquina diabólica esperando que lhe caia em sorte ou bondade uma moeda.
As funcionárias adoram ser cúmplices e sugerem o que devemos comer com acenos de cabeça, um piscar de olhos ou uma deixa apropriada.
Há os velhinhos que vêm em grupo, normalmente mulheres, antigas professoras aposto, muito bem arranjadas, às vezes até de casacos de peles e maquilhadas, sobretudo muito conversadeiras. Há os que vêm sozinhos e descobrem os outros, e os que vêm sozinhos e não querem mesmo ser descobertos.
Os que vêm de bengala ou canadianas são ajudados pelas funcionárias que lhes levam o tabuleiro até á mesa.
Há quem ache que tem aquele lugar reservado e se sente no lugar ao lado refilando entre dentes o tempo todo, em tentativa de reconquista do lugar adorado pela força da indignação expressa em palavras sussurradas.
Há, descobri hoje quando um senhor desmaiou, muita solidariedade e um conhecimento mútuo mas calado.
A cantina parece um outro mundo, paralelo, com passagem secreta atrás de portas discretas, mas é o nosso mundo. O meu e o vosso.
Deprimente? Nem tanto. É a vida.

Leonor Martins de Carvalho