sexta-feira, 2 de março de 2012

CARTEIRA DE SENHORA

DIA 6
Inesperadamente, da carteira hoje saltou qualquer coisa que, para alguns, parecerá não condizer com um acessório de senhora. Já agora aviso que para meu puro deleite recorro propositadamente a generalizações.
Primeiro, o objecto. A coisa. Estou a referir-me ao automóvel, à viatura, mais comummente designada de carro. Assim o chamam as mulheres, claro, que o tratam por aquilo que o objecto é, um carro. Quando o assunto vem à baila é sempre como o meu carro, ou quando muito, a minha carrinha.
Os homens, não. Dizer o meu carro é pouco. Fazem questão de marcar a diferença e tratá-lo pelo nome próprio. O meu Audi, o teu Porsche, o nosso Jaguar, o vosso Mercedes e o Aston Martin, sempre invejado, mas que é dele, do outro.
Alguns até preferem usar o nome completo com os apelidos todos da família, ipsis verbis o livrete, “o meu BMW X3 série 5 JKYHG”, especialmente quando sabem que o interlocutor tem um BMW da série inferior. Se a situação fosse inversa, ou não tendo a certeza, apenas refeririam “o meu BMW” para que a dúvida ficasse subtilmente a pairar…
Alturas houve em que os modelos de carros tiveram direito a estatuto próprio, emanciparam-se do nome de família e ganharam alcunha: a arrastadeira, o 2 cavalos, o boca de sapo, o carocha, o 4 latas... Já não acontece. Os carros deixaram de ter personalidade.
Há muitos anos, quando se comprava um carro era quase para a vida. A escolha era ponderada e discutida, tornava-se quase cerimonial a ida familiar ao stand (mais conhecido por alguns como stander…). Muito estimado pois, o carro, queria-se bem protegido com aquelas capas de retalhos em formatos desiguais de vários tons de cinzento, e a matrícula ora pintada em letras garrafais, de lado, ou no tecto, para proporcionar uma visão do alto, não se percebia bem a quem, mas talvez aos próprios donos que o espreitavam com desvelo do seu apartamento no 6º frente, ora num rectângulo desenhado precisamente por cima do sítio onde estava a verdadeira matrícula, reproduzindo-a fielmente, como se o carro fosse mesmo aquilo, aquele embrulho cinzento. Uma grande parte dos fins-de-semana era dedicada à viatura, proporcionando-lhe uma sessão de beleza completa com manicura incluída, e o célebre passeio de domingo.
Hoje muitos já nem compram carro, devolvem-no após poucos anos, no fim de contratos rebuscados com nomes cada vez estranhos e estrangeirados. Não é bem coisa sua. É como se fosse emprestada. Perdeu-se também, este bem-querer.
Para a mulher um carro é apenas uma coisa útil. Tão útil quanto outra coisa qualquer. As coisas, para as mulheres, ou são bonitas ou são úteis. Só as coisas bonitas têm autorização para serem inúteis. As úteis podem ser feias, desde que a utilidade esteja comprovada. Para além de permitir cumprir o objectivo de executar com rapidez uma sucessão de tarefas num período mais ou menos curto, as mulheres gostariam que o carro fosse ainda mais útil e avisasse, talvez com aquelas vozes de GPS ou vários alarmes sonoros, quando é preciso mudar o óleo, a água, os limpa pára-brisas, os pneus, tudo com a antecedência devida, porque a agenda é apertada. Também dava jeito que um senhor engenheiro inventasse uma forma mais simples de mudar pneus.
O meu carro, que é carrinha, não diz nada. Foi muito útil antes de o preço da gasolina ter inviabilizado a sua utilidade. Agora, está para ali, sujo, a desfazer-se, coleccionando anúncios de videntes, ginásios e gabinetes de estética. Qualquer dia não pia. Não parece, mas gosto dele: não se queixa e espera-me.
Do verbo, conduzir ou guiar, como vos aprouver, tentarei que salte da carteira no próximo dia, em capítulo próprio.

Leonor Martins de Carvalho