CARTEIRA DE SENHORA
DIA 7
Pela primeira vez, meto a mão na carteira e aparece o que procurava. Deve ser caso único, e aproveito esta generosa dádiva.
Vou então toda lampeira discorrer sobre a condução, assunto em que a minha competência pode ser considerada duvidosa, já que apenas passei quando fiz o exame pela segunda vez. O que se passou na primeira tem que se lhe diga, mas não me vou alongar em argumentos que sei serão prontamente rebatidos com ar trocista, especialmente pelo, sempre pronto a isso, género complementar (nunca digo oposto).
Sobre táxis e taxistas não me vou pronunciar. São um mundo à parte, que parece ter regras escritas em código específico a que não nos é dado acesso. Nem adianta refilar em caso de conflito porque a razão mesmo não lhes assistindo, está estranhamente sempre do mesmo lado. Talvez um dia apareça um capítulo próprio com as histórias, boas e más.
De camiões e camionistas então, nem arrisco falar. Tenho um respeito imenso. Sempre que ultrapasso um, passa-me pela cabeça que é desta que apanho um maluco que quer brincar com o meu matchbox e encosto-me perigosamente à divisória de betão até me lembrar que assim ainda vai parecer suicídio, e que o plano dele vai resultar, e ninguém vai perceber que foi engendrado pelo camionista, pelo que tento então manter uma rota que me pareça salvaguardar dos dois, para sair dali o mais rapidamente possível sem pensar muito nisso.
Voltemos pois ao que interessa. O resto dos condutores, os nossos vizinhos de estrada, esses condóminos em andamento.
Cada português está convencido que ninguém conduz melhor que ele. Vê-se desde logo na atitude com que acciona o comando remoto e depois abre lentamente a porta do carro, varrendo disfarçadamente o espaço em seu redor com olhar sobranceiro, apenas aparentemente indiferente. Eis-me, o condutor magnífico entrando no meu carro magnífico.
Se antes de entrar no carro já achava que era o melhor condutor do Universo, quando se senta e põe as mãos no volante passa a ter a certeza. Absoluta. Encarna todos os campeões de Fórmula 1 ou de todo-o-terreno e sabe que foi apenas um pequeno percalço, um revés da vida que não o levou à internacionalização, ao reconhecimento, à fama. A partir daqui, tudo pode acontecer.
Há vários tipos de condutores e estes são apenas alguns: os muito conhecidos condutores de domingo, que com muita calma, mesmo com muita calma, levam a passear a família inteira com excepção do canário, os que guiam de chapéu, um verdadeiro mistério, de quem devemos fugir a sete rodas porque há-de haver uma razão secreta para o usarem mas não é com certeza a boa condução, os nervosos, que chamam nomes que não conseguimos ouvir ou que insistem em fazer gestos obscenos não percebendo que nunca os chegamos a ver, os que têm como lema “o camisola amarela sou eu”, os que nem sabem para que serve o pisca-pisca mas têm a mão colada à buzina, e os que estão ali para proporcionar aos outros música ambiente, debitada a decibéis não previstos por Regulamentos da União Europeia.
A estrada não é como uma festa privada por convite. Toda esta diversidade se encontra ao mesmo tempo nos mesmos sítios, quer sejam estradas municipais, nacionais ou auto-estradas.
Dantes, as auto-estradas eram simples, tinham apenas duas faixas: uma para andar, outra para ultrapassar. Se bem que sempre houve alguns que apenas conheciam a faixa da esquerda.
Com a invenção da 3ª faixa, conseguiram baralhar os portugueses. Convenceram alguns, normalmente os que conduzem a 60 à hora, que a faixa da direita está reservada. Não para eles, mas para camiões, que até andam a 80. É pois vê-los todos catitas, na faixa do meio, obrigando os que estejam à sua direita a manobras dignas de rali para os conseguir ultrapassar e voltar à faixa normal, a da direita, como diz o Código, o tal que todos esquecem mal ouvem a palavra “passado!”, no exame.
Este fenómeno da faixa do meio chama-se “complexo Scaletrix”, e é perfeitamente compreensível pelo facto de a iniciação à condução se ter dado nas pistas com o mesmo nome. Se bem se lembram, a pista tinha uma espécie de guia, ao longo da qual o carrinho telecomandado deslizava. Não saía da guia a não ser por despiste.
É assim, nas auto-estradas portuguesas. Entram com o carro na faixa do meio e nunca, mas nunca mais de lá saem. Para alguns, esse complexo aplica-se à faixa mais à esquerda, mas esses já nós conhecíamos e tratávamos por tu.
Há ainda toda uma série de características de condução, por mero acaso ou não, mais masculinas, que levam a situações como por exemplo, estarmos a ultrapassar e aparecer de repente um tipo coladinho (de onde é que este apareceu?) a fazer sinais de luzes desesperados. Esqueça. Não faça isso que eu travo.
Ou naqueles dias de filas desesperantes, saltitarem de faixa em faixa com ar vitorioso, em guinadas súbitas, sem se aperceberem que afinal, o vizinho do lado acabou por chegar ao destino antes.
Ou as entradas intempestivas, à papo-seco em linguagem de automobilista, na auto-estrada. Estas entradas têm relação directa com o complexo Scaletrix, uma vez que quem entra, pensa estar ainda na mesma pista.
Ou aqueles que após serem ultrapassados por uma mulher, mais feridos no seu orgulho do que quando o seu clube perde com o maior rival, não descansam enquanto não executam a sua vingança mesmo à custa do esforço hercúleo de um motor fraquito. Coitados, nem lhes passa pela cabeça que o sabor da vitória dura pouco. O tempo de voltar à faixa da direita. Ou do meio, se sofrer do complexo Scaletrix.
Não há como a experiência de ter um carro de velocidade limitada para aprender a ter calma ao volante. Quando andava de Dyane, e tive duas, naquelas idas ou voltas de férias, nunca me queixei de filas. É verdade que era sempre a última.
Agora apenas queria informar que aquela que está a guiar o meu carro, não sou eu…
Pela primeira vez, meto a mão na carteira e aparece o que procurava. Deve ser caso único, e aproveito esta generosa dádiva.
Vou então toda lampeira discorrer sobre a condução, assunto em que a minha competência pode ser considerada duvidosa, já que apenas passei quando fiz o exame pela segunda vez. O que se passou na primeira tem que se lhe diga, mas não me vou alongar em argumentos que sei serão prontamente rebatidos com ar trocista, especialmente pelo, sempre pronto a isso, género complementar (nunca digo oposto).
Sobre táxis e taxistas não me vou pronunciar. São um mundo à parte, que parece ter regras escritas em código específico a que não nos é dado acesso. Nem adianta refilar em caso de conflito porque a razão mesmo não lhes assistindo, está estranhamente sempre do mesmo lado. Talvez um dia apareça um capítulo próprio com as histórias, boas e más.
De camiões e camionistas então, nem arrisco falar. Tenho um respeito imenso. Sempre que ultrapasso um, passa-me pela cabeça que é desta que apanho um maluco que quer brincar com o meu matchbox e encosto-me perigosamente à divisória de betão até me lembrar que assim ainda vai parecer suicídio, e que o plano dele vai resultar, e ninguém vai perceber que foi engendrado pelo camionista, pelo que tento então manter uma rota que me pareça salvaguardar dos dois, para sair dali o mais rapidamente possível sem pensar muito nisso.
Voltemos pois ao que interessa. O resto dos condutores, os nossos vizinhos de estrada, esses condóminos em andamento.
Cada português está convencido que ninguém conduz melhor que ele. Vê-se desde logo na atitude com que acciona o comando remoto e depois abre lentamente a porta do carro, varrendo disfarçadamente o espaço em seu redor com olhar sobranceiro, apenas aparentemente indiferente. Eis-me, o condutor magnífico entrando no meu carro magnífico.
Se antes de entrar no carro já achava que era o melhor condutor do Universo, quando se senta e põe as mãos no volante passa a ter a certeza. Absoluta. Encarna todos os campeões de Fórmula 1 ou de todo-o-terreno e sabe que foi apenas um pequeno percalço, um revés da vida que não o levou à internacionalização, ao reconhecimento, à fama. A partir daqui, tudo pode acontecer.
Há vários tipos de condutores e estes são apenas alguns: os muito conhecidos condutores de domingo, que com muita calma, mesmo com muita calma, levam a passear a família inteira com excepção do canário, os que guiam de chapéu, um verdadeiro mistério, de quem devemos fugir a sete rodas porque há-de haver uma razão secreta para o usarem mas não é com certeza a boa condução, os nervosos, que chamam nomes que não conseguimos ouvir ou que insistem em fazer gestos obscenos não percebendo que nunca os chegamos a ver, os que têm como lema “o camisola amarela sou eu”, os que nem sabem para que serve o pisca-pisca mas têm a mão colada à buzina, e os que estão ali para proporcionar aos outros música ambiente, debitada a decibéis não previstos por Regulamentos da União Europeia.
A estrada não é como uma festa privada por convite. Toda esta diversidade se encontra ao mesmo tempo nos mesmos sítios, quer sejam estradas municipais, nacionais ou auto-estradas.
Dantes, as auto-estradas eram simples, tinham apenas duas faixas: uma para andar, outra para ultrapassar. Se bem que sempre houve alguns que apenas conheciam a faixa da esquerda.
Com a invenção da 3ª faixa, conseguiram baralhar os portugueses. Convenceram alguns, normalmente os que conduzem a 60 à hora, que a faixa da direita está reservada. Não para eles, mas para camiões, que até andam a 80. É pois vê-los todos catitas, na faixa do meio, obrigando os que estejam à sua direita a manobras dignas de rali para os conseguir ultrapassar e voltar à faixa normal, a da direita, como diz o Código, o tal que todos esquecem mal ouvem a palavra “passado!”, no exame.
Este fenómeno da faixa do meio chama-se “complexo Scaletrix”, e é perfeitamente compreensível pelo facto de a iniciação à condução se ter dado nas pistas com o mesmo nome. Se bem se lembram, a pista tinha uma espécie de guia, ao longo da qual o carrinho telecomandado deslizava. Não saía da guia a não ser por despiste.
É assim, nas auto-estradas portuguesas. Entram com o carro na faixa do meio e nunca, mas nunca mais de lá saem. Para alguns, esse complexo aplica-se à faixa mais à esquerda, mas esses já nós conhecíamos e tratávamos por tu.
Há ainda toda uma série de características de condução, por mero acaso ou não, mais masculinas, que levam a situações como por exemplo, estarmos a ultrapassar e aparecer de repente um tipo coladinho (de onde é que este apareceu?) a fazer sinais de luzes desesperados. Esqueça. Não faça isso que eu travo.
Ou naqueles dias de filas desesperantes, saltitarem de faixa em faixa com ar vitorioso, em guinadas súbitas, sem se aperceberem que afinal, o vizinho do lado acabou por chegar ao destino antes.
Ou as entradas intempestivas, à papo-seco em linguagem de automobilista, na auto-estrada. Estas entradas têm relação directa com o complexo Scaletrix, uma vez que quem entra, pensa estar ainda na mesma pista.
Ou aqueles que após serem ultrapassados por uma mulher, mais feridos no seu orgulho do que quando o seu clube perde com o maior rival, não descansam enquanto não executam a sua vingança mesmo à custa do esforço hercúleo de um motor fraquito. Coitados, nem lhes passa pela cabeça que o sabor da vitória dura pouco. O tempo de voltar à faixa da direita. Ou do meio, se sofrer do complexo Scaletrix.
Não há como a experiência de ter um carro de velocidade limitada para aprender a ter calma ao volante. Quando andava de Dyane, e tive duas, naquelas idas ou voltas de férias, nunca me queixei de filas. É verdade que era sempre a última.
Agora apenas queria informar que aquela que está a guiar o meu carro, não sou eu…
Leonor Martins de Carvalho
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