sexta-feira, 23 de março de 2012

CARTEIRA DE SENHORA

DIA 9
Por mais que mexa e remexa, ainda não encontrei o tal texto que tinha posto na carteira por volta do século passado. Desta vez apareceu um papel todo amarrotado que, depois de cuidadosamente desdobrado para não se rasgar, apenas tinha escrito, em letra apressada, “trabalho”, assim uma coisa meio vaga, que por isso se vai reflectir em texto necessariamente curto para não ter muito do dito.
Parece estranho falar ironicamente sobre trabalho num país que cada vez tem menos para oferecer aos seus. Assim, pensai que esta crónica se passa num país normal, aquele que um dia imaginamos será o nosso, e não nesta Ilusitânia (nome com que meu avô baptizou o Portugal de Salazar em 1940 e perfeitamente actual).
Aqui há quem teime em qualificar ou desqualificar o trabalho por zonas geográficas e climáticas. Essa iluminada teoria tenta convencer-nos que no Norte se trabalha mesmo muito, no Sul quase nada, em zonas frias o labor é intensivo e em zonas quentes só existe o passo do caracol.
Pensam eles que têm teorias originais, mas esta divisão é mais conhecida e revisitada que a Mona Lisa. No fundo é puro plágio das mesmas teorias divisionistas feitas noutros países, e até por analogia extensiva nos impingem constantemente a sua comprovação prática a zonas geográficas que galgam fronteiras e mesmo continentes: Europa do Norte versus Europa do Sul, Europa versus África e, apetece-me dizer, Terra versus Lua.
Outro costume enraizado nos portugueses é menosprezar o trabalho dos outros. Sim, porque o nosso é que é mesmo a sério. Nós trabalhamos que nem mouros. Os outros nunca trabalham ou, condescendendo muito, trabalham poucochinho. Têm empregos! Andam na boa vida enquanto nós, pobres sofredores, carregamos nos ombros a responsabilidade do autêntico, genuíno e patenteado trabalho.
Assim de chofre, vêm logo à baila três palavras que enganadoramente parecem sinónimos entre si, mas que afinal, consoante as pessoas que as pronunciam e o tom em que são ditas, espelham visões diferentes do trabalho. Estou a pensar em trabalho, emprego e serviço, termos que, no seu uso quotidiano, tanto significam o local onde se exerce, como o trabalho propriamente dito.
Quando logo de manhã nos dirigimos para onde ganhamos o nosso pão e leite e luz e casa, ninguém diz vou para a lavandaria Rosa Maria ou para a sociedade de advogados Rui, António e Lopes Associados. O uso do nome por extenso é para o cliente do estabelecimento. O comum dos mortais vai para o trabalho, para o serviço ou para o emprego. As raras excepções têm-nas quem à viva força quer que todos saibam onde labuta, desparecendo então as formas abreviadas para dar lugar ao ridículo do nome por extenso.
Trabalho é palavra maldita para uns, os que o tratam tu cá tu lá por emprego, sonhando com o dia da libertação, que virá jogando esperançada e desesperadamente em todos os jogos da Santa Casa.
Para outros é salvífica, adoram o que fazem, sem aquele trabalho feito à sua exacta medida a vida não faria qualquer sentido e reformam-se só quando são obrigados, entrando numa espécie de negação quando de repente se vêem sem horário para cumprir nem tarefas pré-determinadas.
Há depois os que usam a palavra serviço, normalmente funcionários públicos, herança de tempos idos em que o serviço ao país tinha valor. Hoje, serviço na função pública tanto pode significar trabalho como emprego, embora haja ainda quem faça jus ao termo.
O trabalho é coisa muito séria. O serviço também, tanto que sói dizer-se “eu não brinco em serviço”. Estranho é a expressão não se aplicar ao trabalho e ao emprego, o que poderia indiciar que nestes o folguedo é constante, mentira mal construída então agora que acabou o Carnaval.
Nada do que foi dito acima é taxativo e as combinações são múltiplas: há quem esteja empregado mas trabalhe, quem esteja ao serviço mas tenha emprego, quem trabalhe mas esteja ao serviço.
Afinal o texto acabou por ser mais longo que o previsto, deu bastante trabalho, não vai ter emprego decente, nem prestou serviço em condições.
Os três termos apenas se reencontram no seu contrário, o desemprego. Aí, quem tinha trabalho, emprego ou serviço sente-se traído, abandonado, deitado fora, como o papel amarrotado em que a palavra surgiu…

Leonor Martins de Carvalho