quarta-feira, 7 de março de 2012

FRANCISCO CABRAL DE MONCADA TEM A PALAVRA

Portugal morreu?

Dei com esta pergunta do meu amigo Manuel Brás aqui de chofre, há poucos dias. Reconheci então prontamente que essa pergunta, ela mesma, inquietantemente, dolorosamente, se me alojara no espírito, como hóspede não convidado, há muito tempo. E que, como uma lapa bem viva, foi resistindo sempre à rejeição. Hoje, vejo que é tempo de expressar a atenção que ela merece, e que é enorme. De facto, creio que nos últimos tempos, medidos por décadas, não há mesmo coisa que deva merecer maior atenção dos Portugueses.

O brado final da Mensagem -- «É a Hora!» -- poderia condensar, se fosse possível um resumo, o que me ocorreria chamar o testamento moral de Fernando Pessoa: aquilo que fica, aparentemente, de mais positivo e virado para o outro, singular ou colectivo, da sua mensagem. Liberto, ou esquecido, em ultra-lúcido transe, do seu ego angustiado, desesperado, encarcerado (que será o do seu poema Hora Absurda, p. ex.), ele deixa-nos uma última e dupla exortação -- primeiro, à nossa consciência colectiva e, logo após, à de cada um -- para que reajamos ao marasmo, ao desalento, à desgraça pessoal e colectiva, e a transformemos, ou colaboremos na transformação redentora do estado de abatimento e confusão (o «nevoeiro») a que se teriam confinado as nossas almas e, por extensão, a do País, através de um renovado projecto pessoal e nacional (a «Distancia»). Não sendo eu, sei-o bem, um grande conhecedor da vasta e complexa obra de Fernando Pessoa, suponho que isto que acabo de dizer não deverá ter nada de original ou de polémico e constituirá talvez até uma interpretação bastante vulgar.

Uma questão crucial, aqui hoje, é a da identidade, mais concretamente, o problema gravíssimo da negação e abandono forçado da nossa identidade histórica fundamental, associado e agravado por um ingente problema de fundo, no chamado mundo ocidental em que nos situamos, de esvaimento gradual e progressivo das energias morais, se quisermos. Pensando bem, nem sei qual destes dois aspectos será o mais decisivo, visto o intricado, entre nós, das suas mútuas relações.

Estou em crer que uma nação não resiste inteira a mudanças radicais de identidade. Costuma partir-se em dois, as mais das vezes. Que tem hoje a França pós-moderna a ver com os restos da França profunda, os que ainda se lembram de Santa Joana d'Arc? Portugal -- para mim, e julgo que também para uma maioria mais ou menos consciente, pelo menos até há algumas décadas -- já desde o seu princípio e ao longo dos séculos, representou sempre sobretudo um projecto comum, e autónomo, em acção. Não um projecto qualquer mas, precisamente, a expressão de um certo ideal de convivência fraterna (o contrário da confusão igualitária) e universal entre homens e entre raças, povos ou nações: numa palavra, o Ideal Católico. Viver e partilhar o exemplo de Cristo, aqui e pelo mundo fora, à nossa maneira. Uma maneira forçosamente imperfeita, é claro, mas que num balanço geral se deve reconhecer ter sido generosa e levada avante de boa fé. E, vendo bem as coisas como se passaram parece que, nessa grande aventura, foi como se a Providência nos tivesse ido presenteando, em jeito de pródiga e não negociada recompensa, com as condições e os frutos que nos vários momentos fomos porfiada e esforçadamente buscando, encontrando e conquistando, e que tão necessários foram ao nosso sustento, à nossa realização e à nossa independência.

Parece-me que é isto mesmo, em suma, o que uma História bem contada reiteradamente nos recorda. Um testemunho flagrante desta ideia de Portugal, do tempo em que Portugal foi mais feliz, e que revela o estado de um Povo em uníssono, é o que nos oferece, em luminoso instantâneo, o conjunto dos painéis de Nuno Gonçalves. Esta mesma ideia-mestra, e o seu pôr em prática, vigorou e persistiu, apesar de todas as crises e depressões passadas, gravíssimas algumas, até não há muitos anos. Tudo isto são coisas sabidas e já ditas e reditas, mas que nunca são demais relembrar. Mas é de realçar que aquelas anteriores crises e depressões nunca foram crises e depressões de identidade, pelo menos em grau que de longe se compare à gravidade da derradeira e presente grande crise (não me refiro à recentíssima crise financeira, que já é em parte uma consequência daqueloutra).

Desgraçadamente, parece que Portugal, há coisa de uns quarenta anos a esta parte, se cansou, e esqueceu, de si próprio. E digo parece porque, na realidade, por essa data e em certos meios sociais, políticos e militares, para já não falar no chamado católico-progressista, as suas forças morais e a própria ideia nacional já vinham sendo paulatina, insensível e insidiosamente minados. O certo é que, cruamente, quase de um dia para o outro, o nosso plurissecular projecto apareceu desfeito como um castelo de cartas. Hoje, Deus nos valha, Portugal lembra a espaços um louco perdido, querendo fugir da própria sombra, e a ideia que os pomposamente chamados cidadãos revelam ter do seu País pulverizou-se já em enorme parte ou sumiu-se mesmo por completo em muitas almas, após anos e anos de demagogia maciça e de tentativa constante, em grande parte conseguida, de transformação gradual, disfarçada e insensível, do senso comum, objectivo este tão caro, como é sabido, do marxismo cultural, inconfessado mas de facto omnipresente, à semelhança do ar que a ave não vê. Resultado final: Mourinho, CR7 e companhia (por muito estimáveis que sejam...) são hoje os heróis da pátria... E nisto, curiosamente, talvez não passe afinal de um pudor que receia o abuso do nome santo, a juntar à intuição da verdade, o uso, já relativamente vulgar, cru e castigador, que uma certa parte da população, da porventura mais sábia, vem fazendo, quando se refere à terra onde vive em termos alternativos, depreciativos ou anedóticos, para designar uma realidade que sente ser produto adulterado, e o qual não quer, no fundo, ver confundido com o original -- tais como «este país», «isto», «esta m....», «tugolândia», etc.

Releia-se Franco Nogueira e os gritos de alerta por ele deixados há vinte e mais anos (As Crises e os Homens; Juízo Final). Eu diria que agora será um verdadeiro milagre poder regenerar-se a situação descrita a curto prazo, porque os poderes inimigos da Nação, da autoridade do Estado, da Igreja e da justa e tradicional relação de complementaridade, nas suas esferas próprias (nem sempre perfeitamente respeitadas no passado, é certo), entre estes dois últimos -- ordenada ao respeito da moral católica no plano do poder temporal -- vêm triunfando, no balanço actual, em toda a linha.

Esses poderes, que têm servido desígnios em última análise meta-políticos, aberta ou veladamente revolucionários (e tem-nos havido para todos os gostos, desde os do liberalismo e no capitalismo até ao comunismo), tiranicamente e em nome dos «sagrados princípios», e não raro em conjunto com o próprio auto-aniquilamento, conseguiram acabar já há muito com a nossa Nobreza (o escol, a elite, em suma, o conjunto dos melhores valores na sociedade, reconhecido como tal), a qual, quando com genuíno papel social, constitui naturalmente um membro especialmente eficaz e indispensável de qualquer comunidade justamente ordenada. Não obstante, em círculos restritos mas sobretudo, isoladamente, continua a haver, apesar de tudo, estou em crer, um número muito razoável de portugueses a muitos títulos, nobres.

Por outro lado, e custa admiti-lo, não se percebem claramente na actual hierarquia da Igreja, em Portugal, as altas e tão necessárias qualidades de zelo pastoral e vigor reactivo face aos inimigos externos e internos, que os há igualmente desta última espécie, o que não surpreende e já foi aliás mencionado pelo actual Papa Bento XVI, em alusão de abrangência geral não confinada ao nosso país.

Com a ruptura brutal do projecto Português, de que não há fugir, e sem outra versão igualmente digna daquele, no horizonte próximo das possibilidades que se afiguram viáveis; sem um Estado visando sempre o bem-comum para lá dos discursos e dos textos, e detendo a necessária autoridade, impossível em partidocracia; com uma Igreja que não tem demonstrado a capacidade de estar plenamente à altura das agressões e ameaças da hora presente; sem o vislumbre de um escol organizável e minimamente efectivo; e, para cúmulo, com a continuada lavagem de cérebros e obnubilação infligidas ao nosso Povo -- o quadro é mesmo muito, muito negro e tende a enegrecer cada vez mais. O «nevoeiro» está cada vez mais cerrado. O que equivale a dizer: a identidade e o nervo da Nação, cada um deles, estão cada vez mais indistintos. Daí a pertinência e a lucidez da cruciante mas fatal pergunta do meu valente amigo Manuel Brás: Portugal morreu?

Não sei se já morreu. Ou se é como se tivesse morrido, qual nau cativa num mar de «sargaço». Mas porém, como acredito de facto em milagres, aos que desconhecem o verbo desistir, direi: oxalá não seja esse, ainda, o caso. Como..., quando..., não sei (alguém saberá já, ao certo?); contudo, e querendo acreditar que ainda não é findo, o tempo, de conseguirmos começar a repintar o negro quadro, parece-me que, para começar, bem forçoso seja -- e para mim próprio falo, em primeiro lugar -- que aqueles, menos ou mais numerosos, os que formos, que não desistimos de Portugal, passemos todos a acordar com o cantar do galo, a lavar bem os olhos, a abrir velhos e novos livros, a ouvir o silêncio, a procurar os nossos pares. Será este o nosso prévio trabalho de casa, a dosear à medida de cada um.

Mas depois, ou enquanto isso, que mais deveremos fazer? Como avaliar o que nos espera e quais as reais possibilidades de salvação?

Antes de continuar, porém, é necessário abordar, em breve linhas, o problema político. Há um problema político em Portugal? É evidente que sim. Consiste ele no actual e já velho beco sem saída, no nosso país, que é o divórcio crónico insanável entre governantes -- por sistema desenquadrados de uma visão integrada e continua, ao mesmo tempo retrospectiva e prospectiva, do bem-comum e da própria realidade concreta do País -- e governados -- por sistema desenquadrados das formas de participação política que melhor poderão representar o papel de cada um e o todo nacional. O sistema político vigente, assente num conjunto de supostas certezas contestáveis, tais como a liberdade do indivíduo como fim único do Estado e a igualdade dos homens, conducentes à noção atomizada/massificada de povo, a razão das maiorias, a soberania popular e a excelência do sufrágio universal individualista e do sistema dos partidos políticos, tem demonstrado ficar muito aquém das necessidades concretas da Nação e do Povo real que a constitui. O resultado está bem à vista e é este: uma partidocracia demagógica num Estado gigantesco, controlador e omnipresente, mas fraco. É muito mau, é muito curto, não serve. É preciso outro.

Em todo o caso, a resolução do problema político parece poder vir a ser a verdadeira chave mágica do problema mais geral -- a salvação de Portugal. Uma mudança política que nos abra o caminho para um novo projecto mobilizador e regenerador das nossas energias mais profundas -- a tal «Distancia» na voz do Poeta, em continuidade e harmonia com a nossa identidade de sempre. Teremos aqui um caso de aplicação maurrasiana da «politique d'abord»? Veremos.

Em tese, assim poderia ser. Em 1926, assim foi -- por intermédio de um golpe militar e de uma posterior revolução contra-revolucionária, que conseguiu em grande medida sanar a situação anterior. Mas hoje, aqui, no momento presente, não se afigura possível uma coisa dessas. Não só os militares estão, ao que parece, se não maioritariamente conformados, pelo menos eficazmente submetidos ao poder civil, como a população em geral não parece ainda consciente e suficientemente receptiva a qualquer mudança decisiva, pela confusão que tomou muitos espíritos, resultado da continuada desinformação e propaganda que lhes tem sido ministrada ao longo de muitos anos. O caminho a seguir, portanto, para chegar a conseguir uma eficaz mudança política a prazo, parece só poder vir a ser o da recuperação das inteligências e das vontades -- a recuperação da consciência patriótica, das consciências tout-court, de um número crítico inicial de Portugueses, pondo-se depois em marcha o esperado efeito multiplicador. Tal só será possível, assim, pela intensificação do combate cultural. À revolução mundial e ao marxismo cultural, preferencialmente utilizado por aquela depois da II Grande Guerra, só poderá responder-se com a contra-revolucão. Com anti-marxismo cultural e, sobretudo, idealmente, com a devoção expressa publicamente por palavras e por obras ao tríplice desígnio Deus -- Pátria -- Rei. Invista-se pois a fundo, por todos os meios ao nosso alcance -- em que se destaca a enorme e até ao presente bem aberta janela da Internet -- neste combate cultural.

Agora, sobre a possibilidade de um novo sistema. Julgando-me eu monárquico e convencido da bondade e da viabilidade a certo prazo por ora indeterminado, de uma solução política monárquica para Portugal (não vou agora aqui detalhar porquê, mas bastará ter em devida conta os resultados da nossa tradição política alargada), uma saída verdadeiramente regeneradora não ficará garantida, como alguns poderão pensar, com uma nominal troca de regime: será necessário ir muito mais além do que sair simplesmente o Presidente da República e entrar o Rei. Será preciso, a meu ver e indo por partes, começar por substituir o actual sistema político por um sistema novo, com outros pressupostos. Um sistema em que a participação dos Portugueses represente, de facto, o valor e o papel social de cada pessoa, desde a mais humilde e até ao topo. Em que o voto e a participação de cada um não se limitem à de indivíduo isolado mas o sejam, de preferência, hierarquicamente e como membro das diversas comunidades naturais, profissionais, culturais, etc., em que se integra. Falo de um sistema de representação orgânica, como já repararam.

Não vou aqui alongar-me muito neste tema, mas queria só adiantar que provavelmente não serão necessárias excepcionais qualidades criativas no levantar esse novo sistema político: bastará alguma inspiração, a retirar da nossa plurissecular tradição, e uma sábia adaptação aos novos tempos. Garantido isto, o Rei virá, de preferência já em simultâneo, presidir o novo (afinal já muito antigo, em sua essência) sistema, com a sua devida autoridade. Uma autoridade e um poder que deverão transcender, em boa medida, os de simples árbitro. Já tem sido defendido que as funções vitais da Justiça, da Defesa e das Relações Externas, pelo menos, deveriam ficar sob o seu directo controlo. Quem já cedo no século passado e até pode dizer-se aos nossos dias, veio propugnando uma solução deste tipo, sabemo-lo bem quem foi: os fundadores do Movimento do Integralismo Lusitano, com António Sardinha à cabeça, e as suas várias gerações de continuadores. Eu acredito que será esse o melhor caminho. O mais natural, no fundo. E que ele poderá ser viável, dada a sua estabilidade intrínseca básica (já durou grosso modo pelo menos cinco séculos seguidos), mesmo que numa conjuntura futura tão complexa e imprevisível como a presente, desde que aos Portugueses o dito caminho venha a ser apresentado de boa fé e tal como é ou poderá ser antevisto. Então, mais tarde ou mais cedo e apesar de tudo, eles o saberão reconhecer, e eleger.

Para concluir, uma referência ao aspecto, tão importante, das relações, dependências e influências externas, oficiais ou apenas reais, existentes ou expectáveis. Tal como as coisas estão agora deveremos contar com a hostilidade declarada dos poderes internacionais dominantes a qualquer mudança política interna que se pareça com a atrás defendida -- veja-se o actual caso da Hungria, e as imediatas reacções internacionais surgidas face à sua nova Constituição. No entanto, a relação de forças representativa dos diferentes desígnios em presença, na Europa, poderá mudar no futuro. Que nos reservará o amanhã? Devendo-nos nós preocupar, antes de mais nada, em prosseguir com o nosso próprio trabalho, poderá bem acontecer que o caminho húngaro, por exemplo, acabe por vingar, fazer carreira e chegar também até nós. Por outro lado, noutro campo muito distinto, julgo que poderemos ter muito a ganhar, a vários títulos entre os quais realço aqui o do nosso reforço identitário, com o estreitamento das relações com os países que outrora integraram ou se relacionaram com o nosso passado Império, e nos quais persistem populações que prezam a nossa memória e desejam uma colaboração renovada.

Dito isto tudo, poderá, é claro, o cepticismo de alguém, e até sem nenhuma malícia, começar por questionar: não será este longo repto algo de pouco credível? Vã pretensão apenas, de um Dom Quixote menor?... Bom..., a isso também não sei responder. Em todo o caso isto sei:

Se nos afirmamos Portugueses, então..., cumpre-nos honrar, todos nós e de preferência em concerto, e em concreto, custe o que custar, o brado final..., a ordem..., de Fernando Pessoa.

Portugal passou e continua a passar pela sua, nossa voz.

Francisco Cabral de Moncada