sexta-feira, 13 de abril de 2012

CARTEIRA DE SENHORA

DIA 11
Um dos meus irmãos deu a entender de forma indirecta mas certeira - servem mesmo para isso os irmãos - que as crónicas da carteira versam assuntos já muito tratados e debatidos. Será assim, mas a carteira não sabe disso. Não tem acesso a bibliotecas nem às maravilhas da tecnologia. Além do mais, existe alguma coisa no Universo sobre a qual não tenha já perorado alguém? Nós, os últimos da fila, limitamo-nos a fazer de eco, na tentativa de parecerem uns ecos originais, cheios de trinados e floreados para disfarçar. Vem isto a propósito do tema com que a carteira me resolveu brindar esta semana.
Qualquer citadino tem, pelo menos através de um dos seus 4 costados, uma terra que pode chamar sua. Ou duas, ou três ou até mesmo quatro.
As raras excepções que não gostam de ficar órfãs, acabam por recorrer à adopção e depois de muito calcorrearem, descobrem o seu paraíso privado e compram o seu cantinho, passando então a pertencer à categoria dos que vão à terra, mesmo que lhe dêem outro nome para parecer mais chique.
Ir à terra é um conceito abrangente utilizado por facilitismo mas também por afeição. O outro interlocutor ou já sabe de antemão qual é a dita, ou se estiver mesmo interessado, obriga ao esmiúço, opção sempre entusiasticamente recebida que dá direito a descrição completa do itinerário mais rápido, em alternativa o mais bonito, e todo um circuito guiado da terra à imagem dos autocarros turísticos descapotáveis que nos deixam entrar e sair em qualquer estação, com a diferença de este, afinal, só abrir a porta no fim.
Há quem nunca chegue a nomear a terra, optando por uma designação mais alargada que serve múltiplos propósitos: os complexados, os ciosos da sua privacidade e até os presunçosos (pensam que o “vou ao Alentejo” sempre soa mais chique que dizer que vai para São Pedro de Gafanhoeira).
Aliás, quando as pessoas se acabam de conhecer, naquele tactear inicial em busca de afinidades, uma das zonas preferidas do tacto é a terra de origem. Começam geralmente pela grandeza maior, a Província, e na coincidência, vão descendo para o Distrito, depois o Concelho, até à freguesia e à aldeia. Claro que ninguém duvida que a freguesia de cada um é a mais bonita do Concelho, do Distrito e quiçá da Província.
Nesta procura incessante quase desesperada de pontos de contacto, às vezes palmilham o percurso inverso tentando encontrar nele os elos perdidos. No fim, em desespero de causa, acabam muito contentes só por serem de Províncias adjacentes ou mesmo entremeadas. Ainda que um seja do Algarve e outro do Minho encontram no facto de terem espanhóis como vizinhos aquela faísca para o abraço do reconhecimento, enquanto vão elogiando a sua própria terra.
Entre os urbanos que têm terra, há os que a desprezam e renegam. Outros voltam uma vez por ano, de sorriso forçado, e esmeram-se em mostrar que são diferentes, superiores, e que a vida na aldeia é um atraso de vida.
Depois há os que adoram, põem-se a caminho sempre que podem, mantêm aí uma horta que tentam fazer sobreviver a todo o custo, voltam a conviver na tasca ou no café como se de lá nunca tivessem saído. A tristeza do regresso ao subúrbio sem cor é compensada com um carro atulhado até ao tecto com tudo o que conseguem levar e lhes faça lembrar a terra nos dias cinzentos que se seguem até à próxima ida à terra.
Há os que a exaltam e os que a calam. Os que sonham em voltar e os que a baniram dos seus horizontes. Os que lá se sentem em casa e os que só gostam da estrada que lhes apressa a saída.
Há muito quem use a expressão “santa terrinha” num esgar e em tom trocista. Fiquem sabendo que é por isso mesmo que é santa, porque os viu nascer ou aos seus pais e ainda lhes atura despautérios e desprezos.
Quem esquece as raízes, não as acarinha e rega, não pode ter frutos, ou serão estes secos, mirrados ou podres.
Ir à terra chega a ser, em Portugal, quase uma filosofia de vida, e enquanto existir a ida à terra, eu sei que Portugal tem coração. Vive.

Leonor Martins de Carvalho