sexta-feira, 20 de abril de 2012

CARTEIRA DE SENHORA

DIA 12
A carteira deve andar revoltada. De há um tempo para cá que só me aparecem papéis rasgados em evidente fúria. Sou obrigada a reconstruir pacientemente o quebra-cabeças e acabo por descobrir várias palavras que foram rasuradas com a força de uma emoção que não posso qualificar de aprazível.
Somos um povo gregário ou individualista? Para além disso, gregários ou eremitas, assumimo-nos como grei?
No edifício onde trabalho houve há alguns anos um problema de salmonelas (ou algo similar) e nunca mais ninguém confiou na água da companhia, mesmo após os prometidos ajustes. Trataram assim de encomendar aquelas torres circulares abraçadas a garrafão e de copos acoplados, empilhados como espada em riste, que simpaticamente nos davam a escolher entre água normal ou fresca. As minhas teimosas reminiscências bucólicas imediatamente as baptizaram de fontes ou nascentes.
Claro que veio a crise e levou as torres. O medo do regresso à água da torneira obrigou quase todos a abastecerem-se no supermercado, de onde voltam sobrecarregados ora com garrafões, ora com garrafas. Eu, que até redescobri a água da companhia (morro mais depressa do tabaco que de uma probabilidade ínfima de bactéria), andei a sugerir que bastava calcularem o número de garrafões e garrafas usadas por semana num determinado andar ou em vários e pedirem ao supermercado que as mandasse entregar, aliviando as cargas diárias de uns e, em troca, as filas na caixa de outros. Passaram 4 meses. Tudo como dantes. Se pergunto porque não o fazem, “Ah! pois, és capaz de ter razão…”. Não são capazes de se organizar. Cada um por si, mesmo contra toda a lógica.
Numa praia com quilómetros de areal, chegamos às oito da manhã. Ninguém à vista, mas mesmo assim, escolhemos um sítio bem longe do apoio de praia. Pelas dez horas aparecem os segundos clientes da praia, um casal. Claro que não há melhor sítio em todos os quilómetros quadrados disponíveis que o metro quadrado ao lado da nossa toalha.
São dois pequenos exemplos da nossa tortuosa mentalidade. Parece que ao fim de milhares de anos deixámos de entender o essencial e, teimosos, persistimos em ser gregários nas alturas erradas.
Quando ouvimos e acreditamos nos políticos de falinhas mansas e ambições bravas somos rebanho.
Quando nos juntamos à porta dos tribunais para insultar e agredir os réus somos populaça (estranhamente em casos de crime económico só vi uma vez alguém a fazê-lo, mas estava sozinho).
Mas quando lutamos juntos ao lado da Maria da Fonte, somos grei.
Quando abraçamos entusiasticamente uma causa como foi Timor, somos grei.
Quando, em completo silêncio, com duzentas mil pessoas de uma ponta à outra da régua política desfilamos na manifestação da geração à rasca, submergida inesperadamente por todas as gerações indignadas que sem falar mostraram não ser mudas, somos grei.
Quando nos fecham o centro de saúde ou nos querem desmontar a freguesia e logo organizamos vigílias e nos manifestamos na capital mostrando o que somos na diversidade, somos grei.
Quando criamos mil e umas associações cívicas porque não queremos desistir e tentamos assim furar a rede de arame farpado com que o sistema nos cercou, somos grei.
Quando resistimos e não nos calamos perante a destruição que nos ameaça soçobrar, somos grei.
Sem grei não há Nação. Saibamos sê-la. Com honra e valentia.

Leonor Martins de Carvalho