sexta-feira, 27 de abril de 2012

CARTEIRA DE SENHORA

DIA 13
Desta feita resolvi abanar a carteira para ver se lhe baralhava os planos. Ultimamente acabo sempre a fazer exortações a pender para o político-patriótico naquilo que me tem saído em sorte. Duvido muito da eficácia desses reptos e pretendia qualquer coisinha mais corriqueira que não me levasse a tais devaneios. Veremos.
Tendo saído secamente cabeleireiro, como que em birra, parece assunto inócuo e decididamente feminino o que arredará com toda a certeza leitores masculinos, a não ser que se interessem pelos mistérios insondáveis das suas caras-metades num local que lhes é normalmente inacessível, um mundo com um vocabulário próprio, poliglota, do brushing, nuances e permanentes, reservado às habituées.
Não serei exemplar único e vou ao mesmo cabeleireiro desde a adolescência. Deve ser por isso que ela se atreve a fazer toda a espécie de experiências começadas por “m”, de macabras a mortíferas passando por maquiavélicas, aproveitando-se de saber-me mansa nestas coisas, das que não refila perante o choque do inesperado. Sou cobaia de todas as empregadas novas que ela quer treinar, mas garanto que qualquer dia peço ajuda à Associação Nacional de Protecção das Cobaias.
É um microcosmo, um cabeleireiro de bairro. As senhoras normalmente vão em dias fixos, e por isso conheço melhor as das quintas e das sextas, embora se decidir aparecer numa quarta ou num sábado, é certo e sabido que vou reconhecer as mesmas senhoras das quartas e sábados de antanho.
Indo muitas vezes à quinta-feira, já se habituaram a que leve o alinhavo desta crónica (um dia até me perguntaram se eu tinha de decorar o papel todo) e que, de caneta na mão, releia, resmungue entre dentes, rasure e acrescente. Aliás, estou a escrever em directo, vocês desse lado é que vêem a emissão em diferido…
Sendo de bairro é naturalmente o cabeleireiro de várias gerações, mesmo que já aí não vivam todas, como é o meu caso, porque ainda lá vai a minha mãe e passou a ir também a minha filha. É habitual a opção ida em família, em que se concentram no mesmo espaço, mas em vários estádios de completitude, avó, mãe, filhas e netas. Enquanto a avó adormeceu no secador com os rolos, a mãe espera que a tinta faça efeito, a filha faz brushing e a neta está sentada na cadeira, para ela gigante, com um penteador (outra palavra secreta dada ao babete gigante com que nos embrulham) que lhe deixa apenas a cabecita de fora esperando com ar desconfiado que lhe cortem os caracóis.
As mais velhas vêm de bengala, andarilho ou de braço dado com a empregada. Outras telefonam aos maridos e esperam pacientemente que as venham buscar. De vez em quando há visitas: alguém abre a porta para anunciar um nascimento ou um casamento ou uma criança que só quer espreitar e cumprimentar.
Como noutros lados há clientes que barafustam sempre e de tudo: da temperatura da água ou do secador, da forma de lavar, do corte ou da tinta. Umas trazem os seus próprios produtos ou têm-nos lá guardados, conferindo cuidadosamente para ver se alguém andou a usar os seus queridos champôs. Outras teimam em dar um toque pessoal depois de a cabeleireira ter tocado o apito final, pondo ganchos e mais ganchos, acertando franjas e puxando o cabelo até acabarem por estragar por completo o que tão cuidadosamente acabara de ser feito. Há depois aquelas odiosas que chegam 5 minutos antes do fecho e querem que se lhes faça um trabalho que vai demorar 2 horas.
As figuras em que as mulheres se encontram num cabeleireiro são de fugir: ou têm umas toucas de plástico na cabeça com mil e um furinhos de onde saem uns tufos de cabelo (nunca fiz mas acho que é para as tais nuances), ou têm a cabeça cheia de rolos de vários tamanhos, feitios e cores, ou ainda o cabelo cheio de tinta moldado em formas que lembram aquelas esculturas sem título. Por isso, a situação mais humilhante na vida de uma mulher é um homem entrar por ali dentro nesse preciso momento. Não estamos literalmente preparadas, quer mental quer fisicamente. Só que nestes cabeleireiros de bairro é sempre um risco. O menino que lá cortou o cabelo até aos cinco anos, habituou-se, cresceu e volta não volta aparece, com o maior dos desplantes. Esquece-se que já não tem cinco, tem trinta e cinco, é lindo de morrer e nós naquelas figuras.
Já é mundial e cientificamente reconhecido o facto de 98% das revistas cor-de-rosa serem lidas nos cabeleireiros (não, não é nos médicos, esses só têm revistas pseudo-intelectuais ou de viagens, já maiores de idade, o que em tempo revisteiro significa mais de dois anos). Depois das leituras há as conversas, cujos temas andam em roda-viva à volta, e por esta ordem, do conteúdo das revistas, da família e da família dos outros, do bairro e até de política (mas nunca futebol senhores! por mais que tente, não pega). Entre as silenciosas e as palradeiras estão as que peroram do alto da sua cadeira e do seu penteador para que ouçam bem a sua sapiência sobre a família real inglesa.
Quando uma mulher está em baixo, vai ao cabeleireiro, porque levanta a moral. Convence-nos de que somos as mulheres mais bonitas do mundo. Basta estar à porta e ver o seu olhar cabisbaixo à entrada e o ar triunfante da saída. Saem guerreiras prontas para a vida.
No entanto, quando chegar o dia da batalha, umas preferem ir ao cabeleireiro antes e outras só depois.

Leonor Martins de Carvalho