CARTEIRA DE SENHORA
DIA 15
A
carteira acusou o toque e percebeu que não posso estar constantemente a nadar
em águas mesmo que vagamente políticas. Não é mesmo nada bom para a saúde.
Assim, passou-me outra coisa corriqueira.
Já
aqui disse que sou funcionária pública. Nem sempre fui, e quando comecei a
trabalhar a sério (obviamente que estou a descontar aqueles trabalhos de fim de
semana, quando ainda estudante, para juntar uns trocos), o que mais me
atrapalhava eram as cartas.
Os
números, desde que se conheça o universo onde navegam, dão trabalho mas não é
preciso cerimónias. Não se importam nada que os tratemos mal. Podemos somar,
subtrair, multiplicar, dividir, calcular médias, para eles é uma eterna brincadeira.
Estão sempre bem-dispostos, adoram que brinquemos com eles e pelam-se por nos pregar
partidas.
Agora
as cartas…
Não
fazia parte do pacote universitário aprender a distinguir o grau de cerimónia exigido
e qual se aplicava a quem. Com vinte e poucos anos só tinha ainda escrito
cartas a amigos ou família. De repente, deparo-me com o universo do vocabulário
epistolar comercial para mim até aí desconhecido, um verdadeiro extraterrestre,
que incluía palavras como solicitar, comunicar, informar, anexo, ou expressões
como venho por este meio, na sequência de, e - a conclusão,
senhores, a conclusão! – com respeitosos ou melhores cumprimentos, atentamente,
atenciosamente, cordialmente ou subscrevo-me com elevada estima e
consideração.
Nunca
como ali usei tanto o V. Exª (por alguns alcunhado de Vexa, pronunciado vecha para quem não saiba). Era ao ritmo
de um por frase. Já não sou do tempo do de
V. Exª venerando e obrigado, mas a cerimónia fazia parte.
Nada
tinha ou tenho contra, antes pelo contrário, se há coisa que me enerva são
aqueles anúncios ou folhetos de empresas que me tratam por tu. À primeira penso
que se devem ter enganado na caixa de correio e que invadi a privacidade de
alguém sem querer, até perceber que alguém quer invadir a minha.
Escrever
cartas comerciais revelou-se um exercício delicado. Valeu-me ter de escrever
poucas e haver por onde copiar, mas mesmo assim as dúvidas persistiam. Lembro
que não havia na altura computadores assim, como se fossem blocos de notas
descartáveis. Um gigante lento, com direito à sua própria secretária, era
partilhado por vários, à vez. Sim, sou desse tempo.
A transição
para aquilo que o funcionalismo público chama, de forma ora paternalista ora desdenhosa,
“a privada”, não foi e continua, após vinte e quatro anos, a não ser fácil.
Continuo
a brincar com os meus companheiros números que apenas navegam noutro oceano, e
rapidamente aprendi a conhecer todos os seus segredos, correntes e monstros
incluídos.
Já
com a parte escrita a história é diferente.
A algum
do tal vocabulário epistolar comercial foi concedida equivalência e transitou
de um lado para o outro mas surpreendeu-me existirem nomes distintos ao que a
mim me pareciam as mesmas coisas. Não se escrevem cartas, escrevem-se ofícios.
Um memorando é uma comunicação interna. Um relatório toma a forma de
informação.
Não
são só os nomes que são diferentes. A forma de redigir e algum do vocabulário
são especiais, únicos diria. Demorei a perceber que teria de guardar na gaveta
os dois anos de “privada” e ao fim destes anos de “pública” ainda tenho dúvidas
sobre se estou no tom certo, quando escrevo.
Noutras
alturas já cheguei a pensar se a linguagem específica não seria uma forma de
tortura, porque às vezes a formatação é tão rígida que me qualifica como uma
mestiça de robô comigo própria.
Um
dia vou dar por mim a escrever uma crónica como se estivesse a escrever um
ofício. Nessa altura, queiram fazer o favor de me avisar por carta. Pode ser
informal.
Leonor Martins de Carvalho
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