CARTEIRA DE SENHORA
DIA 20
Não dá para fugir ao
tema, esta semana. A carteira nem deu outra hipótese. Assim, futebol será…
Como declaração de
interesses para total transparência desta crónica, informo que sou benfiquista
de alma e coração (a carteira claro, é sportinguista ou portista consoante os
dias, só para ser do contra).
Os portugueses podiam
vibrar com qualquer outro desporto, até com o curling, mas sabe-se lá porquê, dizem que por influência lá das
Ilhas aliadas, escolheram o futebol. E o hóquei em patins. Os dois desportos
que mais alegrias nos têm dado, mesmo quando perdemos.
Ir ao estádio é um
ritual. Vão em grupos, de dois ou três até à vintena. Ou em casal de namorados
ainda frescos, porque lá mais para diante o rapaz retoma o grupo de origem. Ou
em família, normalmente pais e filhos rapazes, algo entre passagem de
testemunho e cerimónia iniciática.
Uns vão equipados dos
pés à cabeça e equipam assim os filhos e até os cães. Outros, geralmente os que
só arranjaram bilhete no meio de adeptos da equipa contrária, preocupam-se em
não levar mesmo nada que os atraiçoe.
Antes do jogo
verificam se não faltam cachecóis por comprar, porque o último pode ter sido
atirado todo embrulhado em direcção ao relvado com a fúria da humilhação de uma
goleada.
Segue-se a fatal
ronda pelas roulottes, para encher a
pança de desportista de bancada com as típicas bifanas que saciam os nervos e
as cervejolas que os arrasam.
Sentados nos seus
lugares, embalados pelas músicas guerreiras que tentam dar espírito de combate
medieval à coisa, começam a controlar primeiro a sua própria bancada e uma a
uma todas as outras. Actualmente, os espectáculos à americana das meninas ainda
lhes desperta alguma atenção, mas à medida que a hora se aproxima, a tensão vai
subindo e já não sabem onde pôr os dedos, as mãos, os braços. Os pés vão
marcando o famoso ritmo conhecido por nervoso miudinho.
A entrada dos
jogadores, a escolha de campo e a troca de estandartes são seguidas atentamente
como um ritual dentro de outro.
Mal o árbitro apita,
a excitação começa. Levantam-se quando já imaginam um golo na sequência de uma
jogada maravilhosa que ainda agora começou junto da grande área da sua equipa. Tapam
a vista aos que estão sentados atrás, obrigados a levantarem-se, provocando uma
reacção em cadeia.
Em oitenta e oito dos
noventa minutos de jogo, insultam com nomes perfeitamente apropriados árbitro,
adjuntos, jogadores e treinadores da equipa contrária mas também da própria, se
preciso for.
No ténis os
espectadores só viram o pescoço para verem as jogadas. No futebol, a ginástica
é mais completa. Abdominais e pernas: levantam-se e sentam-se, levantam-se e
sentam-se. Braços e dedos: esbracejam, batem palmas, fazem gestos feios.
Maxilares e cordas vocais (órgão mais utilizado): cantam, gritam, insultam.
No fim dos noventa
minutos, perdedores e ganhadores ainda têm adrenalina para a celebração ou para
a decepção.
A linguagem
futebolística pode parecer hermética aos apreciadores de floricultura, mas nada
que umas pequenas lições não resolvam. Para além do básico golo (não confundir
as balizas e saber que trocam na segunda parte), essencial é saber quando é
canto e não pontapé de baliza, quando houve fora de jogo, quando a falta é para
cartão amarelo ou encarnado, quando é penálti, quando é lançamento pela linha
lateral e qual a equipa que lança.
Se aprendeu isto,
pode ir assistir a um jogo e passa a ter o diploma de treinador de bancada,
mesmo que não saiba ainda muito bem os nomes das posições dos jogadores. Já não
passa vergonhas porque aplica os insultos nas alturas certas.
Este retrato
apressado aplica-se em parte aos jogos da selecção, embora a mística seja
diferente, como gostam de dizer os jornalistas da especialidade, os tais que
fazem rolar o esférico pelo relvado.
Alguns, poucos, vibram
mais pelo seu clube do que pela selecção, mas quando esta joga, há quem nem
goste de futebol e inexplicavelmente se ponha eufórico à frente do ecrã.
É das poucas coisas
que ainda une os portugueses, que os anima à volta do nome pátrio: jogos da
selecção portuguesa de futebol e de hóquei.
São jogos diferentes
porque que têm hinos e bandeiras nacionais, em que todos estão do mesmo lado,
sofrem e exultam pela mesma equipa. A deles, a nossa.
É vê-los a cantar o
hino de lágrima no olho e voz embargada, a gritar por Portugal a plenos
pulmões, a torcer pelos novos Magriços, os nossos rapazes, o nosso orgulho.
Prova que nos poderemos unir em volta da Nação noutras ocasiões.
Nestes tempos que só
nos trazem macambúzios vale a pena esquecer os males que temos e os que nos
esperam, por ciclos de noventa minutos em cada jogo da selecção.
Não é ópio. É espírito. É ânimo. É
acreditar. É querer.
“Eia avante, portugueses! Eia avante,
sem temer!”
Leonor Martins de Carvalho
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