sexta-feira, 20 de julho de 2012

CARTEIRA DE SENHORA

DIA 25

Convidei solenemente a carteira para nos acompanhar na visita aos veleiros do Tall Ships Race. Resistiu, fez-se de difícil, mas nisto faço ponto de honra. Quando lerem esta crónica já ela foi, arrastada pelas asas, mas não dá para uma apreciação dessa visita a tempo (embora nem saiba se ela o virá a fazer). Por isso, atirou-me com desprezo um papelito com qualquer coisa rabiscada. Não quis dar parte de fraca e explicar que não percebi, que a letra dela é pior do que a daquele médico cuja tradução nem o mais habilitado farmacêutico nos seus melhores dias consegue fazer. Esperemos que também não se aperceba dos estragos que aqui vou causar.

Estamos sempre a denegrirmo-nos como povo. Quem nos ouça há-de pintar-nos como poço de defeitos em quadro de moldura rasca de doirados a lascar, e esse é mesmo o nosso defeito por excelência. O rebaixamento acompanhado de maledicência. É um estado de espírito nacional. Ninguém escapa, porque se aplica a tudo e todos, ao país e à aldeia, à professora e aos alunos, aos médicos e aos enfermeiros, aos clubes e aos futebolistas, aos funcionários públicos e aos camionistas, e, muito naturalmente, aos governantes e políticos (os quais, aqui para nós, merecem…).

Temos muita dificuldade em “puxar para cima”, preferindo deixarmo-nos ir pela atracção suave da gravidade e deitar abaixo, bem para baixo. Se, por mero acaso de conjunção de boas vontades, aparecem tímidas tentativas de ânimo, ou uns pós de orgulho caseiro, duram apenas instantes com a cabeça fora de água. O povo português é profissional de carteira passada em pregar uma valente “amona”. Primeiro há uns segundos de expectativa, um sentimento passível de confusão com entusiasmo. Eis senão quando aparece o primeiro destemido a arriar, e sem demoras caiem-lhes de uma vez todos os outros em cima.

Mas teremos virtudes, com certeza… Temos e não são poucas, apesar de o defeito anterior nos dar claramente uma visão desfocada e impedir-nos de pensar que sim, por considerar que será uma impossibilidade técnica. Faltam-nos os óculos adequados e recusamos o oftalmologista.

Uma das nossas qualidades é a capacidade de resistência e até a resiliência. Afinal, somos um país em crise há séculos e ainda cá estamos. Poucos, cada vez menos, mas estamos. Resistimos a guerras, invasões, mares tenebrosos, monstros míticos, emigrações em massa, governantes de terra queimada… Deixamos também que nos façam tudo. Neste sentido, a dita capacidade é meio caminho andado para um defeito.

Outra virtude, que nos ajuda na capacidade de resistência, é o sentido de humor. É um sentido de humor especial, mais sarcástico do que divertido, mas não há dúvida que é humor. Sentido.

Qualquer facto, seja ele graça ou desgraça, é explorado até à mais ínfima partícula durante semanas. Há piadas que duram meses, outras que reaparecem anualmente para dar um ar de sua graça.

É pois graças ao sentido de humor e à capacidade de resistência que ainda existimos como povo.

Não queremos reconhecer, sente-se até que paira por vezes uma certa vergonha, mas outra qualidade é gostarmos de Portugal. Não parece. É preciso arrancar a ferros, quase sob tortura. Outras vezes, quando estamos fora, até se torna natural e nem nos reconhecemos. Resistimos o mais que podemos ao verbo amar.

Claro que há as excepções: os que não gostam, nunca gostaram e nunca gostarão de mais nada senão do seu bolso elástico à medida da sua ganância. Sonham com a erradicação de Portugal e apostam na sua dissolução algures, como província ou simples lugar de veraneio, amorfo, descaracterizado, e desprovido de cultura.

Mas nós, os que amamos Portugal, sujeitos sem vergonha do verbo nem do complemento directo, de que estamos à espera?

Leonor Martins de Carvalho