CARTEIRA DE SENHORA
DIA 25
Convidei solenemente
a carteira para nos acompanhar na visita aos veleiros do Tall Ships Race. Resistiu, fez-se de difícil, mas nisto faço ponto
de honra. Quando lerem esta crónica já ela foi, arrastada pelas asas, mas não
dá para uma apreciação dessa visita a tempo (embora nem saiba se ela o virá a
fazer). Por isso, atirou-me com desprezo um papelito com qualquer coisa
rabiscada. Não quis dar parte de fraca e explicar que não percebi, que a letra
dela é pior do que a daquele médico cuja tradução nem o mais habilitado
farmacêutico nos seus melhores dias consegue fazer. Esperemos que também não se
aperceba dos estragos que aqui vou causar.
Estamos sempre a
denegrirmo-nos como povo. Quem nos ouça há-de pintar-nos como poço de defeitos
em quadro de moldura rasca de doirados a lascar, e esse é mesmo o nosso defeito
por excelência. O rebaixamento acompanhado de maledicência. É um estado de
espírito nacional. Ninguém escapa, porque se aplica a tudo e todos, ao país e à
aldeia, à professora e aos alunos, aos médicos e aos enfermeiros, aos clubes e
aos futebolistas, aos funcionários públicos e aos camionistas, e, muito
naturalmente, aos governantes e políticos (os quais, aqui para nós, merecem…).
Temos muita
dificuldade em “puxar para cima”, preferindo deixarmo-nos ir pela atracção
suave da gravidade e deitar abaixo, bem para baixo. Se, por mero acaso de
conjunção de boas vontades, aparecem tímidas tentativas de ânimo, ou uns pós de
orgulho caseiro, duram apenas instantes com a cabeça fora de água. O povo português
é profissional de carteira passada em pregar uma valente “amona”. Primeiro há
uns segundos de expectativa, um sentimento passível de confusão com entusiasmo.
Eis senão quando aparece o primeiro destemido a arriar, e sem demoras
caiem-lhes de uma vez todos os outros em cima.
Mas teremos virtudes,
com certeza… Temos e não são poucas, apesar de o defeito anterior nos dar
claramente uma visão desfocada e impedir-nos de pensar que sim, por considerar
que será uma impossibilidade técnica. Faltam-nos os óculos adequados e
recusamos o oftalmologista.
Uma das nossas
qualidades é a capacidade de resistência e até a resiliência. Afinal, somos um
país em crise há séculos e ainda cá estamos. Poucos, cada vez menos, mas
estamos. Resistimos a guerras, invasões, mares tenebrosos, monstros míticos,
emigrações em massa, governantes de terra queimada… Deixamos também que nos
façam tudo. Neste sentido, a dita capacidade é meio caminho andado para um
defeito.
Outra virtude, que
nos ajuda na capacidade de resistência, é o sentido de humor. É um sentido de
humor especial, mais sarcástico do que divertido, mas não há dúvida que é
humor. Sentido.
Qualquer facto, seja
ele graça ou desgraça, é explorado até à mais ínfima partícula durante semanas.
Há piadas que duram meses, outras que reaparecem anualmente para dar um ar de
sua graça.
É pois graças ao
sentido de humor e à capacidade de resistência que ainda existimos como povo.
Não queremos
reconhecer, sente-se até que paira por vezes uma certa vergonha, mas outra
qualidade é gostarmos de Portugal. Não parece. É preciso arrancar a ferros,
quase sob tortura. Outras vezes, quando estamos fora, até se torna natural e
nem nos reconhecemos. Resistimos o mais que podemos ao verbo amar.
Claro que há as
excepções: os que não gostam, nunca gostaram e nunca gostarão de mais nada
senão do seu bolso elástico à medida da sua ganância. Sonham com a erradicação
de Portugal e apostam na sua dissolução algures, como província ou simples
lugar de veraneio, amorfo, descaracterizado, e desprovido de cultura.
Mas nós, os que
amamos Portugal, sujeitos sem vergonha do verbo nem do complemento directo, de
que estamos à espera?
Leonor Martins de
Carvalho
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