CARTEIRA DE SENHORA
DIA 28
Não sei se levo a
carteira comigo nas férias. Precisamos ambas de folguedo em folga mútua.
Lembrou-se de repente que não tinha chegado a falar da visita aos veleiros da Tall Ships Race e teimou que seria hoje,
mesmo já tendo passado quase um mês.
Fomos ter com os
veleiros num sábado, depois das tentativas goradas de quinta e sexta-feira em
que uma qualquer desculpa esfarrapada se bateu em braço de ferro ganhando por
larga margem à vontade férrea da curiosidade.
Não sei se a carteira
já era conhecida naquele meio. Sei que lhe foi recusada a entrada em todos os
barcos. Nem me atrevi a perguntar porquê. Limitámo-nos, pois, a namorá-los de
fora e ir bisbilhotando o que era possível.
No cais de Santa
Apolónia deparámo-nos com Lisboa inteira mais arredores bem alargados,
passeando como numa hora de ponta desordenada, deparando-se a cada meio passo
com alguém em sentido contrário e sem espaço lateral de fuga, mas estranhamente
ninguém se queixava.
Os portugueses de
hoje poderão não ser marinheiros ou aventureiros, há até quem diga que por cá
ficaram os que nunca partiram nem partiriam, os que recusam o sonho, mas não há
dúvida que um qualquer gene recôndito deve ser comum. Os veleiros tornaram-se
irresistível atracção, misterioso íman que quase adornava Lisboa, tal o êxodo
em direcção ao rio.
Os pretendentes a
marinheiros por uma hora, sujeitaram-se a muitas à procura de lugar para o
carro, mais outras tantas para entrar nos barcos visitáveis e teimavam,
mantendo-se firmes, à torreira do sol batido a vento, esperando a sua vez.
Queriam mesmo sentir. Sentir o quê, afinal? Saudades dos mares por eles não
navegados? Saudades de olhar o infinito?
Ficavam também
pregados ao chão, fascinados a ver os rituais nos barcos que tinham festa
privada, os marinheiros impecáveis, de branco, alinhados no convés, o silvo do
apito quando os convidados subiam a bordo, a continência…
De polacos a
holandeses, passando por britânicos, com um, dois, três ou quatro mastros, ali
à mão de semear repousavam veleiros para todos os gostos, alinhados cais afora,
enfeitados com bandeirinhas multicolores para a ocasião, fingindo-se bem
comportados depois de terem andado na boa vida em alegre correria ao sabor do
vento entre Saint Malo e Lisboa.
Desta vez não veio
nenhum barco sul-americano, esses que costumam ser muito animados, sempre com
música, cantoria e bailarico a bordo. De qualquer forma, o suficiente da crème de la
crème dos grandes veleiros apareceu.
Contudo, o que
interessava mesmo aos portugueses eram os nacionais, os “seus”.
Nem sabiam que um dos
britânicos já tinha sido de portugueses, o Jolie
Brise, um cutter que até ganhou a
primeira etapa. Esconderam-no atrás de outro, como acontecera, aliás, na
passagem anterior da regata por Lisboa.
Mas os conhecidos
lugres Creoula e Stª. Maria Manuela, a caravela Vera Cruz e sobretudo o
navio-escola Sagres, deixavam os portugueses embevecidos e orgulhosos.
Às famílias
completas, de pequenos às cavalitas ou em carrinhos, juntavam-se fotógrafos
amadores e profissionais nas filas, ora espraiando-se ao longo das barreiras
metálicas que ladeavam o cais, ora formando simples esquadria, ora serpente em
movimento, perseguindo as poucas sombras disponíveis.
Muitos, os que ainda
sonham em partir sem destino, embarcariam naquele instante se lhes fosse dada a
oportunidade. Voltariam a ficar os que não sentirão nunca o apelo.
No dia seguinte, para
ver a parada, a carteira correu para a primeira fila. Agora tenho a certeza
absoluta da sua nacionalidade.
O Tejo matou saudades
de embalar e conduzir docemente grandes veleiros de velas desfraldadas e Lisboa
despediu-se como se o hoje fosse ontem.
As Tágides, que se
preparavam para fazer as malas porque há tempos aconselhadas a sair,
redescobriram o sorriso, deslizando inspiradas à frente das proas, e decidiram
ficar, esperando mais dias assim, em que Lisboa se redime.
Leonor Martins de
Carvalho
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