CARTEIRA DE SENHORA
DIA 29
Entrámos oficialmente
de férias, a carteira e eu. Como previsto, rumamos a locais diferentes,
condizentes com óbvias noções opostas daquilo que são férias. Ela, a fanática
do in, segue para os destinos mais
previsíveis e mais frequentados de Verão, as praias, correndo-as de Norte a Sul
para não perder pitada. Já eu levanto voo, plano e aterro directamente onde tenha
a certeza de que não há vivalma, para a felicidade máxima de ser quase eremita
no campo.
Claro que o recado do
fundo da carteira sem fundo tinha de ser as férias, assunto que lhe parece
suficientemente inócuo antes da rentrée,
que prevê explosiva.
Não é preciso tirar
um curso superior sem ou com equivalências, ou frequentar as “novas oportunidades",
basta a simples vivência de todos nós, para sabermos que a noção de férias
varia essencialmente com a idade, o sexo e as disponibilidades financeiras.
As crianças, se as
deixarem, e cada vez deixam menos porque as enchem de TPCs e actividades
organizadas, aproveitam o tempo de férias até à última gota. Parece-lhes então que
a vida é mesmo assim, que será sempre assim, que o resto do ano foi apenas um
episódio para esquecer e que foram salvas da escravidão do tempo. Se desligadas
das novas tecnologias, é o período de outras aprendizagens tão necessárias quanto
as da escola: as brincadeiras sem tempo contado por estridente campainha e os
ensinamentos dos avós.
Quando se chega a
adulto, as férias são uma eterna tentativa de reviver as férias da infância, em
busca daquela sensação única de libertação. Raramente conseguimos. O tempo, o
malvado tempo, recusa-se a esticar. Os dias andam de TGV e de repente acabou o
sonho.
Por outro lado, algumas
mulheres só sabem que estão de férias porque aquela não é a sua cozinha. O
trabalho, esse, é quase o mesmo. São os maridos dessas mulheres que têm férias,
embora gostem de proclamar que ajudam imenso, porque tratam do grelhador e
vigiam as febras ou as sardinhas, uma ou duas vezes por semana.
Férias de adultos à
séria, férias-férias, são em hotéis ou pensões com direito a cama, mesa e roupa
lavadinha, mesmo que por um fim-de-semana. Mas aí o vil metal tem a última
palavra e para muita gente essa palavra é o nada inesperado “não”.
Há quem nunca tenha
tido férias nem saiba o que significam, a não ser que a palavra equivale a de
repente ter a casa cheia dos filhos e netos, emigrados nas cidades portuguesas
ou estrangeiras, e o trabalho redobrado mas o coração cheio. São os que vivem
da terra e lhe seguem os ritmos. Não há férias, há a época das batatas e a
época das cebolas, a época da poda e a época da sementeira.
O tempo das férias de
alguns é também o tempo das festas da terra, do foguetório, das procissões da
padroeira, dos bailaricos e das quermesses. Os da terra tentam sempre que sejam
inesquecíveis e o cartaz varia entre os jogos tradicionais, a banda juvenil, uma
estrela internacional de música “pimba” ou o duo regional que a imita, consoante
o dinheiro que foi possível reunir ao longo do ano.
É o tempo de pôr as
leituras e escritas em dia, o de arrumar papéis e gavetas, o de passear sem
rumo nem horas. Mesmo adultos, ainda sentimos o relógio do calendário escolar e
as férias são o verdadeiro fim do ano.
Às vezes é também o
tempo em que se apanham incautos com medidas que se querem discretas, esperando
que passem despercebidas pela aposta em ninguém interromper férias para refilar.
Numa sociedade
endoidecida cujo amante é o dinheiro e quem vence é a ganância e a ambição a
todo o custo, as férias, cada vez mais resumidas, mas permitindo às famílias
estarem juntas, podem ajudar a contrabalançar e a manter outro tipo de valores que
não alguns dos que se ganham quando se é largado sozinho na brutalidade da vida
e da rua, apenas com os exemplos dos que deveriam ser exemplo e afinal…
Entretanto, nestes
tempos em que andamos de corda na garganta e gritos sufocados, façamos férias no país, mas não do país. Lembremo-nos também dos que já não têm férias porque nada
têm.
Leonor Martins de
Carvalho
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