sexta-feira, 24 de agosto de 2012

CARTEIRA DE SENHORA


DIA 30

Como a carteira foi a banhos à socapa e não me deixou pesquisar o seu conteúdo, fiquei por minha conta.

Nesta minha ermitagem (sei que não existe, mas parece que não chegam, as palavras…), não vejo nem leio notícias, não tenho ideia do que se vai passando fora dos meus horizontes, limitadíssimos, é certo, mas ao mesmo tempo infinitos. Vou então divagar, navegando sem destino, ora em alto mar, ora perto da costa, ao sabor dos ventos. Sei que vão ser rotas muito batidas, mas paciência, os déjà vus também têm direito à vida.

O que nos revolta mais hoje em dia?

Será alguns terem-nos roubado e deixado na penúria sem qualquer espécie de remorso?

Será sentirmos que a justiça nos abandonou?

Será viver num mundo em que já não cabem nem a palavra nem a honra substituídas pela mentira e os seus temíveis guarda-costas, a ganância e a ambição?

Será ver a miséria e abandono em que estão a lançar cada vez mais de nós?

Será saber que nos espremem sem dó nem piedade enquanto tudo continua na mesma e ninguém é responsabilizado?

Será porque nos tentam manipular a consciência apontando-nos como culpados sem perdão?

Será porque acreditámos em palavras que não queríamos acreditar serem ocas?

Será por vermos a soberania a fugir, o património devastado, a língua destruída, como coisa corriqueira de somenos importância ou facto consumado?

Será este sistema fechado em si próprio, uma caricatura a que chamam democracia mas em que sempre os mesmos se servem nenhum servindo Portugal?

Como a vida não é um concurso ou uma eleição podemos bem afirmar que é tudo isto que nos angustia e enoja.

Dizem-nos que os partidos existem para representarem as pessoas. Representam? Ou representam-se a eles mesmos, só rodando as personagens após as saídas para lugares de favor a quem favores prestaram ou para reformas que ninguém compreende?

As palavras, nos programas eleitorais, são vãs. Já sabemos há muito que o prometido antes de eleições só coincide com a praxis em milímetros e quase que por mero acaso. Não são novidade os discursos de políticos dizendo uma coisa e, com o maior dos desplantes, exactamente o seu contrário uns meses depois, voltando em seguida à primitiva quando lhes apraz.

Para chegarmos a este ponto (e não é problema só português), deixámos que toda a vida política (e não só) ficasse na mão dos partidos. Lenta e insidiosamente foram tomando conta de tudo, centralizando cada vez mais, para ter a certeza de que nada escapa ao seu controlo, convencendo-nos de que isso é que é democracia, porque votámos neles para nos governarem para nosso bem.

Um ardil tão grande, tão gigantesco, que vai levar anos a desmontar.

Tratam-nos como se fossemos imbecis, uns pobrezinhos que nada percebem das altas esferas da política, umas crianças órfãs, que precisam de tutores para os guiar pelas adversidades da vida. Neste caso, são eles que criam as adversidades, são tutores como nas histórias infantis a puxar à lágrima, que só querem ficar com o dinheiro do órfão e no fim o deixam na miséria.

Quem está a fazer qualquer coisa pelo país são os portugueses, não os governantes ou as oposições. Estão a sofrer como nunca mas continuam a lutar. A classe política não merece o povo que diz representar.

Há pouca gente verdadeiramente livre para falar. Mas os que o são, ouvimos sofregamente, e têm mais sucesso que qualquer político. Ainda não perceberam, os políticos. E têm medo. Medo de perder o controlo, as mordomias, o poder.

E podemos fazer o quê? Que portas nos deixaram abertas? Só vejo nesgas e buracos de fechadura.

Enchem a boca com o poder da sociedade civil, sabendo à partida que não tem nenhum, e se depender deles, nunca terá. Os meios de comunicação estão normalmente ligados a interesses comuns aos dos partidos.

É o reino do fingimento onde estamos literalmente sem rei nem roque.

Apenas nos temos a nós, um povo espantoso, que mesmo já com idade de descansar, lança as mãos à terra e a mais trabalho para ajudar os filhos.

Aqui, onde estou, ouvindo o silêncio, as folhas cantando o vento, e saboreando um pôr-do-sol português, penso que era fácil ir buscar as soluções à Fonte como vou buscar a água. Límpida, fresca e que sacia a sede.

Leonor Martins de Carvalho