CARTEIRA DE SENHORA
DIA 31
Sem carteira a
pressão é maior, porque era bem mais fácil encontrar um tema vasculhando aquela
coisa sem tino nem fundo. Por isso continuo a vadiagem.
Abalei para o Alentejo. Um Alentejo especial, é certo, arraçado de beirão e
ribatejana, mas que assim lhe permitiu herdar o que há de bom (também o mau?) das
três Províncias.
Aqui há charnecas, extensas
planícies onde se semeava o trigo por entre os sobreiros, mas também há colinas
e montes e escarpas, especialmente quando se desce até ao Tejo. Poucos quilómetros
em qualquer direcção e de repente já não é xisto, são afloramentos de granito,
mais adiante e reaparece o xisto. Uma diversidade de paisagem num tão pequeno
espaço, a exemplo do que afinal acontece numa escala maior em Portugal. A
constante são os sobreiros, as azinheiras, as oliveiras e, infelizmente cada
vez mais, os encalitros e os
pinheiros. Há pouca auga, mas também
existem oásis.
Muitos urbanos odeiam
a vida no campo, especialmente se já vão na terceira geração de cidade e
perderam todos os laços, e nós, e memórias. Odeiam os bichos, aranhas (das
grandes aos aranhiços, e as suas teias estão incluídas na noção de bicho),
formigas, escaravelhos, mosquitos, melgas, abelhas, abelhões, abêsporas, borboletas da noite, que as
de dia ainda se toleram por serem bonitinhas, moscas, varejeiras, lagartos,
lagartixas, osgas, cobras, morcegos, ratos… Dão gritinhos, chamam por socorro,
pouca falta para acharem que devem vir o 112 e os bombeiros.
Já acham graça aos “mémés”,
ainda pegam nos borregos ou cabritos ao colo mas depois largam-nos e gritam
porque lhes fizeram chichi para cima. Das marrãs
têm nojo. Dos bezerros ficam longe, e das vacas ainda mais, que respeitinho é
muito bonito e estes já são animais do grande respeito que lhes dá a cornadura.
No entanto, há sempre
uma altura da vida em que o urbano quer uma casa no campo, - sempre depois da
casa na praia, pois claro - seja por imitação, seja por um qualquer chamamento
genuíno. Está cientificamente comprovado que a taxa de sobrevivência de um
urbano no campo não é muito elevada, por isso só aguenta uns fins-de-semana por
ano.
Este urbano tenta
reproduzir no seu cantinho rural exactamente o seu cantinho urbano, mas sem
paragem de autocarro. Só que o campo tem manhas, e é preciso saber os truques
todos para sobreviver. Aprende-se. Todo um curso de formação especializada. Com
tempo e muitos gritinhos.
Não é só com os
bichos. Também se aprende que o tempo vive noutro planeta. Aqui não há tempo. Não
cabe na cabeça de ninguém dizer aqui que o tempo urge. É uma noção inventada
por urbanos. Aqui só há tempo das sementeiras e das colheitas. O resto é paisagem.
Se o nosso urbano, o
tal que nunca teve laços com a terra ou já os perdeu, quer contribuir para o
desenvolvimento da terra mais próxima do seu novo cantinho rural, procure ver o
que tem à sua disposição nessa terra antes de desandar para Lisboa ou Porto.
Se quer um vidro,
primeiro tente saber se existe vidraceiro na vila. Não se fie se não houver
propaganda à porta, não quer dizer nada. Na própria terra toda a gente sabe
onde ficam os vários mesteres: o sapateiro, a oficina de bicicletas, o mecânico
de automóveis que já não há, o vidraceiro, o carpinteiro. Não precisam de publicidade.
Só a gente de fora não sabe. Vai daí, pergunte. Não se espante se a resposta
não sair pronta, ou se indicarem primeiro a cidade mais próxima. Insista, que acabam
por se lembrar. Depois, descobrir a porta ou portão exacto já é outra aventura.
É fácil perdermo-nos em terras pequenas, fala a experiência. Feitas as
descobertas (às vezes vai surpreender-se com a acumulação de mesteres), lembre-se
sempre que não há tempo.
Os eventuais
comentários, os cochichos, nem se notam quando temos os miminhos. Os produtos
da horta oferecidos (eram tantas as alfaces que trouxemose-as), o sapateiro que faz um furo extra na coleira do cão
enquanto esperamos com o carro mesmo no meio da rua estreita e não leva nada,
as conversas nas lojas (…e a modos que
eles lá forem e fizerem isso…), as queixas no centro de saúde que já nem há
ao fim-de-semana, a disponibilidade para ajudar…
Quando abalar para Lisboa, irei em lágrimas,
porque é aqui que pertenço, é aqui que sou. A carteira nunca vai perceber.
- Atão?
- Qualquer dia avento-a.
Leonor Martins de
Carvalho
<< Home