sexta-feira, 31 de agosto de 2012

CARTEIRA DE SENHORA


DIA 31

Sem carteira a pressão é maior, porque era bem mais fácil encontrar um tema vasculhando aquela coisa sem tino nem fundo. Por isso continuo a vadiagem.

Abalei para o Alentejo. Um Alentejo especial, é certo, arraçado de beirão e ribatejana, mas que assim lhe permitiu herdar o que há de bom (também o mau?) das três Províncias.

Aqui há charnecas, extensas planícies onde se semeava o trigo por entre os sobreiros, mas também há colinas e montes e escarpas, especialmente quando se desce até ao Tejo. Poucos quilómetros em qualquer direcção e de repente já não é xisto, são afloramentos de granito, mais adiante e reaparece o xisto. Uma diversidade de paisagem num tão pequeno espaço, a exemplo do que afinal acontece numa escala maior em Portugal. A constante são os sobreiros, as azinheiras, as oliveiras e, infelizmente cada vez mais, os encalitros e os pinheiros. Há pouca auga, mas também existem oásis.

Muitos urbanos odeiam a vida no campo, especialmente se já vão na terceira geração de cidade e perderam todos os laços, e nós, e memórias. Odeiam os bichos, aranhas (das grandes aos aranhiços, e as suas teias estão incluídas na noção de bicho), formigas, escaravelhos, mosquitos, melgas, abelhas, abelhões, abêsporas, borboletas da noite, que as de dia ainda se toleram por serem bonitinhas, moscas, varejeiras, lagartos, lagartixas, osgas, cobras, morcegos, ratos… Dão gritinhos, chamam por socorro, pouca falta para acharem que devem vir o 112 e os bombeiros.

Já acham graça aos “mémés”, ainda pegam nos borregos ou cabritos ao colo mas depois largam-nos e gritam porque lhes fizeram chichi para cima. Das marrãs têm nojo. Dos bezerros ficam longe, e das vacas ainda mais, que respeitinho é muito bonito e estes já são animais do grande respeito que lhes dá a cornadura.

No entanto, há sempre uma altura da vida em que o urbano quer uma casa no campo, - sempre depois da casa na praia, pois claro - seja por imitação, seja por um qualquer chamamento genuíno. Está cientificamente comprovado que a taxa de sobrevivência de um urbano no campo não é muito elevada, por isso só aguenta uns fins-de-semana por ano.

Este urbano tenta reproduzir no seu cantinho rural exactamente o seu cantinho urbano, mas sem paragem de autocarro. Só que o campo tem manhas, e é preciso saber os truques todos para sobreviver. Aprende-se. Todo um curso de formação especializada. Com tempo e muitos gritinhos.

Não é só com os bichos. Também se aprende que o tempo vive noutro planeta. Aqui não há tempo. Não cabe na cabeça de ninguém dizer aqui que o tempo urge. É uma noção inventada por urbanos. Aqui só há tempo das sementeiras e das colheitas. O resto é paisagem.

Se o nosso urbano, o tal que nunca teve laços com a terra ou já os perdeu, quer contribuir para o desenvolvimento da terra mais próxima do seu novo cantinho rural, procure ver o que tem à sua disposição nessa terra antes de desandar para Lisboa ou Porto.

Se quer um vidro, primeiro tente saber se existe vidraceiro na vila. Não se fie se não houver propaganda à porta, não quer dizer nada. Na própria terra toda a gente sabe onde ficam os vários mesteres: o sapateiro, a oficina de bicicletas, o mecânico de automóveis que já não há, o vidraceiro, o carpinteiro. Não precisam de publicidade. Só a gente de fora não sabe. Vai daí, pergunte. Não se espante se a resposta não sair pronta, ou se indicarem primeiro a cidade mais próxima. Insista, que acabam por se lembrar. Depois, descobrir a porta ou portão exacto já é outra aventura. É fácil perdermo-nos em terras pequenas, fala a experiência. Feitas as descobertas (às vezes vai surpreender-se com a acumulação de mesteres), lembre-se sempre que não há tempo.

Os eventuais comentários, os cochichos, nem se notam quando temos os miminhos. Os produtos da horta oferecidos (eram tantas as alfaces que trouxemose-as), o sapateiro que faz um furo extra na coleira do cão enquanto esperamos com o carro mesmo no meio da rua estreita e não leva nada, as conversas nas lojas (…e a modos que eles lá forem e fizerem isso…), as queixas no centro de saúde que já nem há ao fim-de-semana, a disponibilidade para ajudar…

Quando abalar para Lisboa, irei em lágrimas, porque é aqui que pertenço, é aqui que sou. A carteira nunca vai perceber.

- Atão?

- Qualquer dia avento-a.

Leonor Martins de Carvalho