CARTEIRA DE SENHORA
DIA 38
Queria a carteira
contar uma fábula. A sua fábula. Ficar tão conhecida quanto o corvo e a raposa
de Esopo ou La Fontaine. Entrando a carteira na história, o formato mais
adequado seria um apólogo. Mas recusa-se a ser objecto inanimado, não se quer comparar
aos Relógios Falantes de D. Francisco Manuel de Melo. Compromisso negociado:
será um apólogo em forma de fábula.
Apólogo-fábula da carteira, do filósofo, do coelho, da
múmia e personagens equivalentes
(tinha de
ser um título do tamanho do ego da carteira)
A carteira tinha
assento naquele degrau já a descer para a segunda cave da escala social, seja
qual for a medida utilizada. Ninguém dava por ela mas carregava todo um mundo
lá dentro. Um mundo recheado de sonhos que aguardavam dias melhores.
Quis um dia um
filósofo, que afinal o não era, talvez antes engenheiro domingueiro, e que se
vestia de cor-de-rosa, ter a gentileza de lhe dirigir a palavra. Eram doces as
suas palavras, falavam de auto-estradas, aeroportos, internet, novas
oportunidades… Só lhe pedia que fizesse uma cruz num papel, curiosamente também
a um domingo.
O país das carteiras
acabou sendo governado pelo filósofo-engenheiro de fato cor-de-rosa até se
perceber que negócios estranhos e mirabolantes tinham cavado um poço tão grande
que só para o espectáculo do poço da morte servia. Tendo a carteira caído na
água do poço, ficou, pois, toda encolhida.
Entretanto chamaram
três reis de distantes reinos, especialistas em contas e poços da morte. Foi
assim que se descobriu que o poço se tinha tornado fossa das Marianas.
As carteiras passaram
a depender totalmente do país das salsichas e dos países parte de um clube para
o qual a carteira nunca tinha marcado cruz em papel.
Não tardou que, num
outro dia, o degrau da carteira tivesse a visita de um coelho de pêlo
alaranjado convencido que era cantor, que lhe falou doce mas firmemente do
poço, dos negócios, das vergonhas que tinham de ser cortadas com tesoura de
tosquia. Atrás dele iam batendo portas. A carteira percebeu de imediato que
teria de desenhar uma nova cruz num outro domingo.
Chegado ao poder, o
coelho alaranjado, que adorava os três reis e o país das salsichas, fez tudo o
que lhe foi pedido e ainda mais. A carteira que já tinha encolhido com a água
do poço começou a desfazer-se.
O país das carteiras
não era um reino. Em pequenos ciclos as carteiras escolhiam alguém para fazer
não percebiam bem o quê, e acabavam por lhes dar a todos o cognome de múmias.
Múmias passageiras a quem o destino das carteiras dizia pouco, e por isso pouco
diziam. Assim, não havia a quem recorrer.
A carteira, com
sonhos de subir ao rés-do-chão, está agora na quarta cave e juntaram-se-lhe
muitas outras, todas esfarrapadas e esburacadas. Aprenderam que a política é
dominada por filhos de Geppetto. Sonham juntas com tempos idos gloriosos e
planeiam mudar o país. Para que finalmente venha a ser delas. O país das
carteiras.
Moral: Em país
desgovernado, sofrem as carteiras.
Leonor Martins de
Carvalho
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