CARTEIRA DE SENHORA
DIA 39
Estivemos
fora uns dias e a carteira, a única que viu televisão, não soube fazer um
relato pormenorizado do que se passou entretanto em Portugal e no resto do mundo.
Além disso, invocou cansaço e jet lag,
apressando-se a passar-me com ligeireza a tarefa semanal. Não tive outra
solução senão estar a escrever a crónica no avião de regresso.
Como
em qualquer microcosmo, os comportamentos despoletados por uma viagem de avião
são pessoais e muito diversos, mas podemos claramente distinguir alguns, a que
assistimos amiúde.
Logo
na chegada ao aeroporto, temos os maníacos da pontualidade ou os atrasofóbicos.
Chegam tão cedo que praticam qualquer actividade ao seu dispor num aeroporto, por
mais inútil que seja. Tanto são os melhores clientes das lojas como os mais exasperantes,
entrando e saindo umas mil vezes em cada uma. Óptimos conselheiros, por conhecerem
a fundo todos os detalhes de todos os aeroportos por onde passaram, são fonte
de informação mais valiosa e completa que a própria página do aeroporto na
Internet, mesmo se setenta por cento dela não nos interesse.
No
outro extremo estão os maníacos do atraso, os pontualfóbicos, que gostam de
viver perigosamente, correndo sempre o risco de perder o avião. Aparecem nos últimos
segundos, armados em atleta de corrida de cem metros, pedindo com o ar mais
dramático do mundo na fila da segurança para passarem à frente, por favor,
tenho o voo agora mesmo! Revemo-los a correr desesperados para a porta de
embarque todos suados e descompostos. Do olhar reprovador dos que há muito esperam,
nem querem saber. Um sorrisinho de outra vitória no papo e a prova de que nunca
perdem o avião. Nem para fonte de informação servem. O seu conhecimento de
aeroportos limita-se aos painéis que indicam as portas de embarque.
No
controlo de segurança aparecem os que ainda não perceberam ou teimam em
esquecer as regras. Desde senhoras que não abdicam dos grandes boiões de creme
até homens que insistem em levar o seu desodorizante em spray tamanho XL, desde tesouras gigantes a canivetes suíços, de facas
de mato até xis-actos, as surpresas são muitas.
Os
fumadores (outra boa fonte de informação sobre aeroportos onde é permitido
fumar) dão as últimas e desesperadas passas em dois cigarros de seguida para atestar
o depósito de nicotina.
Já
no avião, há quem pense que tudo tem de caber à força, e a trouxe-mouxe tentam
enfiar o Rossio na Rua da Betesga.
Não
acredito que haja alguém completamente desprovido de medo quando anda de avião.
A maior parte das pessoas defende-se como pode, procurando sobretudo nem pensar
no assunto.
São
uns santos, os que adormecem no segundo exacto em que se sentam, e nesse estado
ficam, cabeça inclinada para a frente, para o lado ou para trás, até as rodas
do trem de aterragem voltarem a tocar no chão. Deixam de ser santos quando
temos o lugar da janela e precisamos urgentemente de ir à casa de banho. É uma
situação algo embaraçosa ter de acordar um estranho.
As
instruções de segurança são apenas seguidas com extrema atenção se o pessoal de
voo for mesmo uma estampa. Não há pois garantias de que tenham sido as
instruções o que realmente foi ouvido e visto. Há ainda gente disposta a tirar
o dia, neste caso a tirar o voo, para atormentar o pessoal de bordo. Outros
tiram o dia para atormentar os vizinhos da frente, não se calando nem um
segundo, a não ser quando a sanduichita de queijo lhes ocupa a boca. Nalguns
casos, nem assim.
No
aproximar do destino, há sempre uns momentos de acalmia, um quase silêncio, não
sei se por estarem a rever a sua terra com saudade ou a terra dos outros com
interesse, se pela ansiedade da aterragem, se simplesmente por não se conseguirem
ouvir com a pressão nos ouvidos.
Claro
que não me podia esquecer dos que batem palmas, até totalmente justificadas após
uma situação mais complicada. Descomprimem e libertam a adrenalina.
Finalmente,
não sei se sabem mas mandam-nos permanecer sentados e de cintos apertados até o
sinal apagar. Mas basta parecer que o avião está a parar e parecem bonecos de
mola. Todos se põem de pé, num atarefamento doentio. Todos, não, porque estas
duas irredutíveis portuguesas da Silva resistem. Com aviões, todo o respeitinho
é ainda pouco. Adorava ouvir um dia a voz grossa de um comandante gritar:
Sentados! Acho que lhes servia de lição. E vingava aqui as duas alminhas bem
comportadas.
Leonor
Martins de Carvalho
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