CARTEIRA DE SENHORA
DIA 42
Já não sei se é a
carteira que anda a contracorrente do país se este a contracorrente da
carteira. Inclino-me para a segunda hipótese só porque gosto de pensar que o
país tem alguma coisa contra a carteira. Sempre é mais estimulante…
Em apenas duas coisas
país e carteira estão em sintonia. Na tristeza, e também na revolta, a carteira
acompanha o estado de espírito geral.
Ora uma situação
revoltante há muitos anos, diria séculos, tem sido a destruição do nosso património
cultural. De todo o património: imóvel, móvel e imaterial. Os edifícios, os
quadros, as estátuas, as tradições, o artesanato, nada tem sido poupado.
Uma destruição quase
despreocupada, como se o país pudesse prescindir sem remorsos da sua memória.
Como se pedras e tradições fossem empecilhos, vá-se lá saber de quê.
Culpas? Da inocente ignorância
à ganância, em conversa íntima com os famosos complexos de que os portugueses
não se conseguem livrar. Adoram a palavra progresso mas dão-lhe uma
interpretação muito própria, que envolve camartelo e cheiro a novo.
Entre demolições, abandonos
ou mesmo restauros desastrosos, é também exemplo o parecer natural colocar estores
de caixa exterior em janelas manuelinas. Se a janela sempre ali esteve, porque
não haveria de ser tratada como as outras? Afinal é uma janela…
Tem sido assim. Um
país que até nem sofreu bombardeamentos, ao contrário de muitos outros, devia
ter a obrigação moral de preservar pelo menos o património imóvel. Bem sei que
não há dinheiro, mas também sei que quando o houve a rodos, parecia que património
se soletrava rotundas.
Felizmente há ainda
muitas e boas vontades e exemplos extraordinários em vários Concelhos, mas não
chega. Ouvir as recomendações de um senhor, cheio das melhores intenções, ao
povo de uma aldeia sobre como combater o bicho da madeira que ataca impiedosamente
os seus santos, esclareceu-me muito sobre a necessidade de aproveitar essas
boas vontades e formá-las em medidas básicas. Sobre o que podem atrever-se a
mexer para preservar e como fazê-lo, e sobre o que nem podem sequer sonhar em
tocar sem recorrer a peritos.
O património
classificado, sob a tutela de um Instituto, normalmente apodrece enquanto
espera por pareceres e dinheiro. O peso burocrático ainda é muito. O que não
está classificado anda ao deus-dará, aos trambolhões entre decisões de
negociatas e falta de dinheiro para manutenção.
A devastação
estende-se às tradições, da língua ao artesanato, passando pela música. Houve
recolhas etnográficas em várias alturas, profissionais e amadoras, mas só
alguns têm vontade de tentar recuperar o que anda perdido.
Até os deliciosos sotaques
se estão a desvanecer. Há procissões a morrer.
Por caprichos de moda
e mais com intuitos comerciais criam-se novas tradições infelizmente algumas
importadas, desprezando-se as antigas.
Poucos conseguem
convencer que o artesanato pode ser uma actividade rentável se bem organizada e
que artesanato não são as bonecas de pano aprendidas em revistas importadas de lavores,
que podem ser muito engraçadas mas não devem fazer esquecer o artesanato local
e genuíno, prestes a dar o triste pio. Não podemos querer lojas de artesanato cópias
fiéis das ditas revistas e iguaizinhas do Minho ao Algarve, nenhuma com
produtos de tradição portuguesa.
Já existe algum
sentido de preservação ainda ténue e por vezes mal direccionado. Parece primordial
a formação das populações para que, detendo o conhecimento sobre o seu
património, melhor o possa defender.
Neste tempo pode
parecer a alguns de certa forma fútil ou a despropósito trazer este assunto à
crónica. Não há tempos melhores ou piores. Todos os tempos são bons para não deixar
esquecer o património, lembrar que também nós o somos e calculem que para a
preservação, pelo menos do imaterial, nem dinheiro é preciso! Que possamos
ajudar a salvar alguma coisa já era bom.
Ao deixar desfazer a
memória, desfaz-se o país e nós nele.
Leonor Martins de
Carvalho
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