CARTEIRA DE SENHORA
DIA 43
Já deram por isso,
claro. A carteira é pior que sombra e segue-me onde quer que vá em trabalho,
embora chegada ao destino tenha programa diferente. Um programa bem mais
divertido com certeza mas desconheço-o, porque a carteira invoca segredo de justiça
sem sequer se dignar informar-me a que processo se refere afinal. Saberei depois
de sussurrado a jornalistas.
Essas viagens já levaram a duas crónicas
escritas em aviões embora o da volta não conte. É estar à porta de casa.
Esta será a primeira
crónica completamente escrita em exílio. Não há escolha possível e salta então
a saudade para a linha da frente.
Não quero saber das
definições esdrúxulas da saudade. Limito-me ao que sinto e parece-me simples. As
saudades que provoca a lonjura, pelo menos. Não vou entrar nas outras.
Que fique claro que
as saudades antecipadas são uma subespécie perfeitamente normal, não são doença
rara a necessitar tratamento especial. Quando nos emocionamos nas despedidas,
quando antes da partida procuramos reter na memória tudo o que nos rodeia, não
é o exército das saudades em pleno campo de batalha?
Nunca estive emigrada
nem nunca passei demasiado tempo fora do país. Simplesmente nunca aconteceu. Mas
já senti a necessidade premente de ouvir e falar português. Uma saudade
inesperada da língua, do seu som e sabor, que tive de matar sem contemplações.
Como todos, se tiver
de emigrar, parto. Também não desisti ainda daquelas resoluções de adolescente,
de voltas ao mundo em barco à vela, de estadias sem tempo nos mais longínquos
locais. Em qualquer caso sei que a bordo segue a saudade.
Uma aflição, uma
sensação indefinida que rebenta em torrente despoletada por uma qualquer insignificância.
Saudade da família,
dos amigos, das caras, das vozes, das conversas, dos disparates, das meiguices.
Mais tudo o que a memória nos vai deixando na baixa-mar.
Saudade da língua, da
gente, do mar, da cor do mar, do sabor a mar, do cheiro a mar, do horizonte, do
campo, da planície, do café, da comida, do bairro, do merceeiro, da cabeleireira,
das memórias, do pequeno e do infinito…
Até temos saudade dos
cheiros. O cheiro a terra molhada noutro país pode até ser agradável mas não me
traz qualquer recordação. E embora alguns sons me toquem na memória, são só mera
aproximação.
Quando a saudade avança
decidida, só apetece voltar ao colo da mãe, ao colo do país, ao aconchego da
lareira, às histórias antigas, aos serões, ao barulho das ondas, à vista sem
fim…
Ver Lisboa a chegar,
emociona sempre. Não somos nós a regressar é ela que regressa. É também o país
que regressa. Afinal, trazemo-lo sempre connosco.
Com saudade,
Leonor Martins de
Carvalho
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