CARTEIRA DE SENHORA
DIA 51
Não sou nada o género
de pessoa adepta de resoluções de Ano Novo, mas afinal sempre tomei uma: deixei
de comprar o passe social e de andar de autocarro. De agora em diante apenas
usarei transporte público em dias de chuva intensa, já que dias de neve
dificilmente verei em Lisboa, ou para distâncias verdadeiramente
intransponíveis para estas pernas. Claro que para a carteira é indiferente, o
tiracolo é o mesmo e sempre lhe vou dando a conhecer esta cidade.
As caminhadas, pelo
menos as matinais, fazem-me atravessar com nostalgia um dos bairros de Lisboa
ligado à minha adolescência, onde porta sim, porta sim, morava alguém do grupo
juvenil que por ali se encontrava aos sábados, numa animada mistura entre os que
pertenciam a grupos da paróquia, outros que andavam no mesmo liceu e ainda outros
que se conheciam desde pequenos. Nem era oficialmente o meu bairro como tal definido
em alguma portaria municipal, mas como vinha de um bairro adjacente, adoptámo-nos
mutuamente.
O bairro era nosso, todo
por nossa conta nesses longos sábados, até porque não havia electronicices a
roubarem tempo ao tempo de estarmos juntos. Sabíamos quem morava em cada
prédio, conhecíamos-lhe todos os recantos. Assistimos à sua degradação
progressiva por má qualidade de construção e falta de capital dos senhorios
para a sua manutenção. Acabaram no chão as casas, e muitos foram saindo do
bairro. Vimos serem construídos novos prédios, primeiro os caixotes, feíssimos,
seguindo-se a inteligente moda dos revestidos a vidro, apropriadíssima para a eterna
falta de sol em Lisboa. Afinal, os ares condicionados tinham de se vender.
Agora, todas as manhãs
revejo alguns dos prédios que conhecia de cor e ainda estão de pé, por vezes entalados
entre dois novos, mas orgulhosamente reabilitados e a chamar as minhas memórias
dos que lá viviam e daqueles sábados eternos.
Nós, os lisboetas,
temos uma relação amor-ódio com a cidade. Deve ser lugar-comum dizer isto, porque
provavelmente acontece o mesmo com todos os outros habitantes de todas as
outras cidades. Paciência.
Odiamos Lisboa quando
está suja, quando só vemos buracos, quando nos lembramos de como era na nossa
infância, quando imaginamos como seria na dos nossos pais, quando percebemos o
muito que foi destruído. Esta sandice da destruição não parece ter paralelo,
pelo menos em quantidade, e é, como de costume, contracorrente. Enquanto outros
tentam preservar, aqui continua a saga parola do (lá volta ele!) complexo do
“moderno”. Ainda há pouco tempo arrancaram candeeiros centenários no Terreiro
do Paço. Até gosto de muita arquitectura de hoje em dia, mas se é de hoje, e nos
casos em que a de ontem pode ser preservada, porquê destruir e construir
exactamente aí? E que dizer ainda do embuste de muitas “salvações” de fachadas?
Amamos Lisboa quando,
nem que seja por minutos, o nosso olhar é de criança e de turista, quando
viramos uma esquina e surge aquele beco mesmo à nossa espera, ou nos surpreende
uma nesga de vista de rio numa viela, uma velhinha à janela, nomes inesperados de
ruas, calçadas, travessas, becos e vielas, quando reconhecemos os pequenos sinais,
às vezes minúsculos que nos contam a sua História.
Pode ser que a tal
relação dos lisboetas com a sua cidade seja afinal mais amor-tristeza. Uma
tristeza imensa pelo amor imenso que lhe temos.
Já o Sol, que conhece
Lisboa de lés a lés, ama-a e, romântico, oferece-lhe descaradamente a luz na
esperança de nunca se separar dela.
Leonor Martins de Carvalho
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