sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

CARTEIRA DE SENHORA


DIA 51

Não sou nada o género de pessoa adepta de resoluções de Ano Novo, mas afinal sempre tomei uma: deixei de comprar o passe social e de andar de autocarro. De agora em diante apenas usarei transporte público em dias de chuva intensa, já que dias de neve dificilmente verei em Lisboa, ou para distâncias verdadeiramente intransponíveis para estas pernas. Claro que para a carteira é indiferente, o tiracolo é o mesmo e sempre lhe vou dando a conhecer esta cidade.

As caminhadas, pelo menos as matinais, fazem-me atravessar com nostalgia um dos bairros de Lisboa ligado à minha adolescência, onde porta sim, porta sim, morava alguém do grupo juvenil que por ali se encontrava aos sábados, numa animada mistura entre os que pertenciam a grupos da paróquia, outros que andavam no mesmo liceu e ainda outros que se conheciam desde pequenos. Nem era oficialmente o meu bairro como tal definido em alguma portaria municipal, mas como vinha de um bairro adjacente, adoptámo-nos mutuamente.

O bairro era nosso, todo por nossa conta nesses longos sábados, até porque não havia electronicices a roubarem tempo ao tempo de estarmos juntos. Sabíamos quem morava em cada prédio, conhecíamos-lhe todos os recantos. Assistimos à sua degradação progressiva por má qualidade de construção e falta de capital dos senhorios para a sua manutenção. Acabaram no chão as casas, e muitos foram saindo do bairro. Vimos serem construídos novos prédios, primeiro os caixotes, feíssimos, seguindo-se a inteligente moda dos revestidos a vidro, apropriadíssima para a eterna falta de sol em Lisboa. Afinal, os ares condicionados tinham de se vender.

Agora, todas as manhãs revejo alguns dos prédios que conhecia de cor e ainda estão de pé, por vezes entalados entre dois novos, mas orgulhosamente reabilitados e a chamar as minhas memórias dos que lá viviam e daqueles sábados eternos.

Nós, os lisboetas, temos uma relação amor-ódio com a cidade. Deve ser lugar-comum dizer isto, porque provavelmente acontece o mesmo com todos os outros habitantes de todas as outras cidades. Paciência.

Odiamos Lisboa quando está suja, quando só vemos buracos, quando nos lembramos de como era na nossa infância, quando imaginamos como seria na dos nossos pais, quando percebemos o muito que foi destruído. Esta sandice da destruição não parece ter paralelo, pelo menos em quantidade, e é, como de costume, contracorrente. Enquanto outros tentam preservar, aqui continua a saga parola do (lá volta ele!) complexo do “moderno”. Ainda há pouco tempo arrancaram candeeiros centenários no Terreiro do Paço. Até gosto de muita arquitectura de hoje em dia, mas se é de hoje, e nos casos em que a de ontem pode ser preservada, porquê destruir e construir exactamente aí? E que dizer ainda do embuste de muitas “salvações” de fachadas?

Amamos Lisboa quando, nem que seja por minutos, o nosso olhar é de criança e de turista, quando viramos uma esquina e surge aquele beco mesmo à nossa espera, ou nos surpreende uma nesga de vista de rio numa viela, uma velhinha à janela, nomes inesperados de ruas, calçadas, travessas, becos e vielas, quando reconhecemos os pequenos sinais, às vezes minúsculos que nos contam a sua História.

Pode ser que a tal relação dos lisboetas com a sua cidade seja afinal mais amor-tristeza. Uma tristeza imensa pelo amor imenso que lhe temos.

Já o Sol, que conhece Lisboa de lés a lés, ama-a e, romântico, oferece-lhe descaradamente a luz na esperança de nunca se separar dela.

Leonor Martins de Carvalho