segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

CADERNOS INTERATLÂNTICOS (4)

Juan Carlos L. é argentino, professor de Direito e antigo jornalista. Católico a sério, a sua “terceira idade” está dedicada ao estudo, à caridade, à erradicação do flagelo da droga na juventude, à defesa intransigente da vida e da família. JC – chamemos-lhe assim – é meu bom amigo.  Mais exactamente: eu é que tenho o privilégio de ser seu amigo.
Filho de um diplomata, viveu de miúdo em Lisboa, na Borges Carneiro. Qual a minha surpresa quando o conheci, mal terminava a minha primeira e modesta intervenção pública em Buenos Aires, uma charla sobre Salazar e o Estado Novo. Julguei que estava a falar com um alfacinha de gema!
Tão apegado ficou à Portugal e às coisas portuguesas que aqui veio passar a sua luna de miel, e porque tinha de mostrar à jovem esposa o país que tanto admirava – sua História e sua gente, suas Catedrais e seus castelos, suas aldeias e seus campos, seu modo tão particular de estar no mundo e, claro está, seu regime político.  É que nessa altura – estamos em 1966 – a Argentina entrava numa fase de reestruturação nacional, com o governo do General Onganía a apostar na restauração da Autoridade e na adopção de princípios corporativos. Recorde-se que é esse mesmo militar que, ajoelhado aos pés da imagem da Santíssima Virgem de Luján, Padroeira da Nação, consagra o país dos argentinos ao Coração Imaculado da Santíssima Virgem Maria.  
A ligação de JC com Portugal é realmente impressionante. Seu pai, depois de servir como Secretário de Embaixada no imediato pós-guerra, retorna, volvidos três lustros, como Embaixador. E para cá é enviado uma terceira vez, em Julho de 1970, em missão extraordinária, para representar a Argentina nas exéquias de Salazar. Nesse mesmo ano JC desloca-se a Angola, como jornalista da Radio Rivadavia de Buenos Aires.
Durante vários meses esquadrinha essa província ultramarina de lés a lés: de Luanda a Henrique de Carvalho, de Carmona a Sá da Bandeira, de Malanje a Serpa Pinto. Imaginem o que é estar em Buenos Aires e escutar um argentino discorrer, com o à-vontade de um habitué, sobre Moçâmedes, Vila Amélia ou o Moxico!  Após calcorrear cidade e mato, acompanhar a tropa em missões várias, conversar com quanto preto, branco ou mulato que encontrou, JC chega ao fim do périplo convencido de cinco coisas: da especificidade do “caso” português, não comparável com qualquer outro; do progresso efectivo, inquestionável, daquele pedaço de Portugal; da debilidade material e moral dos movimentos guerrilheiros; da justeza da sociedade luso-tropical em oposição à tragédia que viria a reboque do marxismo; da vitória militar portuguesa.
Entusiasmado com o que viu e viveu, JC chega a Buenos Aires e dão-lhe carta branca para preparar o conteúdo do documentário radiofónico que tem por objectivo dar a conhecer o que se passa em Angola. Mas com uma única condição: que poderia dizer o que quisesse menos dizer bem dos portugueses. Retrucou o meu amigo que não estava ali para dizer bem ou mal, somente para relatar o que viu e sentiu. Escusado será acrescentar que a emissão ficou em águas de bacalhau.
Entretanto a situação política argentina deteriorava-se dia a dia. A subversão marxista tomava proporções inauditas, o atrevimento do terrorismo e da guerrilha levava a sociedade às portas da desintegração. Nacionalista católico, JC não pestanejou na hora de assumir as suas responsabilidades, e por milagre  não perdeu a vida, junto com a mulher e o filho, num atentado levado a cabo por um comando montonero. Metido até ao pescoço em uma guerra em casa – a sua guerra –, como esperar que também guerreasse a nossa?
Foi com o coração apertado que acompanhou a tragédia do 25/4/74 e a nossa desgraça. Com amargura, separado por um oceano de água e recordações, assistiu ao criminoso desmantelamento de Portugal. Radioamador, ainda conseguiu ajudar na fuga de algum amigo que fizera em Angola ou na Metrópole, auxiliando a sua instalação na Argentina, para recomeçar a vida do zero. 
As suas notas, ou melhor, o seu journal de guerre, estão à espera de JC para sacudir-lhes o pó, dar-lhes forma e mandá-las ao prelo. Eu, insistente que sou,  propus-me como New Year´s resolution, convencê-lo a dar o seu testemunho.  Espero que as minhas démarches não tardem em dar frutos.  Quem sabe se, para o ano, não teremos cá esse português adoptivo a dizer da sua justiça e a restaurar a verdade histórica que nos toca fundo na alma?
Até para a semana.
Marcos Pinho de Escobar