segunda-feira, 20 de maio de 2013

CADERNOS INTERATLÂNTICOS (17)

A família de um querido amigo já falecido – um dos grandes diplomatas que já passaram pelas Necessidades – teve a bondade de facultar-me o acesso à sua correspondência com Salazar, assim como às cartas trocadas com Marcello Caetano.

Mediando os quarenta, e a chefiar uma embaixada de primera ordem, o meu amigo cogita abandonar a carreira e dar novo rumo à vida. Via Ministro dos Negócios Estrangeiros o assunto chega aos ouvidos de Salazar. De próprio punho este escreve ao diplomata uma primorosa carta de sete páginas exortando-o a reconsiderar. Com lógica implacável Salazar elenca as razões pelas quais Portugal não pode dar-se o luxo de abrir mão da colaboração de um dos seus “melhores valores”. A missiva surtiu o efeito desejado: em menos de dois meses lá estava o diplomata a assumir uma das embaixadas vitais para a política externa portuguesa em tempos de agressão ao Ultramar. É aí, em período de suma gravidade para a Nação, que vai desenvolver uma acção a muitos títulos brilhante, realizando plenamente os objectivos de política estabelecidos em Lisboa, elevando o prestígio de Portugal a patamares nunca dantes atingidos.

Passa o tempo. Salazar sofre o acidente vascular cerebral que o incapacita e é substituído por Marcello Caetano. Nas palavras deste, habituados tanto tempo ao governo de um “homem de génio”, os portugueses teriam de acostumar-se ao governo de “um homem como os outros”...

Ao fim de cinco exitosos anos no exercício da missão confiada por Salazar, o meu amigo resolve despedir-se da carreira. Marcello Caetano responde com um pequeno cartão de uma só frase, onde lamenta a decisão tomada, indicando, porém, que não tentará demovê-lo da ideia. E com isso dá-se o assunto por encerrado. Em substituição ao diplomata expoente da sua geração Caetano nomeia pessoa completamente estranha à arte das relações internacionais. Homem inteligente e culto, decerto, mas cuja acção política consistiria – na sua própria expressão – em “conquistar o país com vinho e queijo da serra.” E assim, muito folcloricamente, encetou-se a descida do plano inclinado.

Se ainda tinha alguma ilusão a respeito da actuação de Marcello Caetano ao leme da nave Portugal, a leitura de um par de cartas serviu para pulverizá-la. O eminente catedrático demonstrou não importar-se com a saída voluntária de um dos grandes elementos da nossa diplomacia. Não julgou necessária a nomeação de um substituto equipado com os conhecimentos e a experiência mínimamente adecuados. Dir-se-ia que para Marcello Caetano a missão política até então executada com mestria deixava de importar.

De tudo isso fica a imagem de um homem que perante graves problemas e dificuldades, sobretudo frente a um inimigo capaz de tudo, sempre alerta e pronto a ocupar qualquer espaço deixado sem guarda, reduz-se ao imobilismo. Não querendo, não podendo, ou não sabendo reaccionar com decisão, este homem, preso à imobilidade e à dúvida, assiste, impassível, à formação da negra tempestade sobre a linha do horizonte. Espírito derrotista, espera sentado, e com os braços cruzados, o desfecho de algo que pode e deve ser enfrentado com fé, com decisão, com acção. Mas não quer ou não pode ou não sabe agir. Nem mesmo reagir. Considerando-se vencido de antemão fecha-se em si mesmo e incarna o papel mais cómodo de eterna vítima – da voragem da História, dos acontecimentos, dos homens, próximos e longínquos.

O resto é sobejamente conhecido...

Até para a semana.

Marcos Pinho de Escobar