sexta-feira, 5 de julho de 2013

CARTEIRA DE SENHORA

DIA 74
Não. A carteira não vai perorar sobre crises políticas e surrealidades patéticas dos políticos portugueses. Sobre a podridão e as amarras em Portugal deixou-me discorrer na crónica anterior porque lhe ocupei o espaço sem dó nem piedade. 
Além disso, vão ter de me perdoar. Tal como nalguns dias de frio o cérebro congela, o calor do dia de hoje, cozinhado em prédio envidraçado sem ar condicionado, tratou de derretê-lo, com consequências da mesmíssima gravidade.
Quando vivemos num país assim, já sem descrição possível, num mundo que não é melhor, sobrevivemos graças a doses diárias de amor e de humor. Se não de ambos, pelo menos de um. Uma das doses, às vezes a única, toma-se logo nos percursos diários.
Quem se mete num carro para ir a todo o lado (sim ainda há muitos, dos que até o podiam dispensar e ainda se queixam da crise) receberá talvez parte da dose diária de humor pela telefonia ou pelo espelho retrovisor que controla as gracinhas dos filhos no banco de trás.
Quem anda a pé, ainda tem esporadicamente direito a cenas caricatas do dia-a-dia que abrem sorrisos logo de manhãzinha.
No metropolitano em Lisboa não sei o que se passa. Evito. Eu e a maior parte dos velhotes. É que são muitas escadas, aquilo está num buraco lá em baixo e nem sequer há direito a vistas. Deve ser por isso que não tem graça nenhuma. O ambiente não propicia. Ou então tenho tido azar quando utilizo. Só gente sisuda e muda, nada de interacções. 
O autocarro é outra coisa. Cada percurso tem os seus aliciantes, em cada um se representa uma peça, com personagens próprias. É que aí, a propósito do nada e do tudo, as conversas saborosas vão seguindo o ritmo das paragens. Em lugar de destaque estão as doenças, graças à idade média dos frequentadores. Empatados seguem-se o tempo e a política. Crianças e estudos contentam-se com as posições seguintes. Todas nos fazem sorrir e algumas obrigam-nos a embrulhar com esforço as gargalhadas para mais tarde.
Outra dose diária de humor vem da mera observação. Por exemplo, a estranha obsessão pelos lugares da ponta deixando vagos os da janela, como quem delineia uma estratégia para ter uma fila só para si. Já estive em autocarros em que todas as filas tinham apenas as coxias ocupadas. Quando entram pessoas, num ápice todos esses ocupantes de coxia pretendentes a ocupantes de fila, olham disfarçadamente para a janela tentando que não sejam eles a quem vamos pedir passagem para a cadeira ao lado. É apenas um dos actos da peça.
Já quanto ao país, sem sermos tidos nem achados, participamos numa tragicomédia apenas como figurantes, sabendo de antemão que os papéis principais estão nas mãos erradas por erradas razões.
Mesmo assim, as razões para sorrir estão à nossa volta. Basta estar disponível.
Leonor Martins de Carvalho