sexta-feira, 30 de agosto de 2013

CARTEIRA DE SENHORA

DIA 82
Hoje resolvi mostrar à carteira um novo mundo: o mundo secreto das secretárias antigas.
Abrimos a tampa devagarinho com o respeito que merece uma papeleira de provecta idade e começámos a inspecção minuciosa a cada uma das divisórias, cada uma das gavetas, cada uma das caixinhas, cada um dos papéis.
Do relatório oficial da viagem a estas paragens desconhecidas mas nunca inóspitas, extraio alguns trechos.
Aparos, lacres, tinteiros e carimbos vários, com monogramas. Dentro de um sobrescrito, os estudos e desenhos de diferentes monogramas escolhidos para coser na roupa, para pôr no gado…
Missais para criança. Santinhos. Lembranças de baptizados e de primeiras comunhões. Menus de casamentos aqui celebrados. Cartões in memoriam. Cartões de visita. Chapa de cartão de visita.
Recortes de jornais com notícias pias, anedotas e receitas. Jornais de várias épocas com anúncios do noivado, do casamento ou da morte. Recortes de revistas com variedades de rosas.
Caixinhas de papel ou de lata, anteriormente de sabonetes, perfumes ou algo que já é imperceptível e que agora têm conteúdos diversos: chaves de urnas delicadamente assinaladas com fita preta, luvinhas, meias e sapatos bordados de bebé, uma madeixa de cabelo embrulhada em pedaço de jornal, restos de planta embrulhados num papelinho explicando que se trata de uma folha de cardo encontrada nos metais da divisa do boné que um tio usou na revolta de Monsanto onde foi ferido, moedas, selos e aquelas pequenas peças que já ninguém sabe o que é mas também ninguém se atreve a deitar fora.
A flauta de um antepassado. Pautas de música para piano, essencialmente óperas de Verdi, e viola.
Cadernos de estudo sobre História e História de Arte, em várias línguas, numa caligrafia cuidada. Um caderno pequenino, com o alfabeto cirílico e algumas palavras em russo.
Conjuntos de postais comprados aquando de visitas ao estrangeiro. Postais e cartas enviados por quem estava noutras paragens, de férias ou na tropa. Uma carta escrita em 09/02/1908 que fala do Regicídio. Outra que descreve, com um humor extraordinário, a estadia na província e o drama das visitas. 
Desenhos, muitos. De crianças, adolescentes e adultos. Fotografias, muitas. Algumas de pessoas que não sabemos nomear. Molduras. 
Uma secretária antiga tem alma. Muitas almas. A de cada um que a utilizou, preservou o que continha e lhe acrescentou a sua parte. Guarda-lhes os segredos que vão sendo revelados às sucessivas gerações. É um mundo inesgotável e sempre renovado. A nossa História.
Leonor Martins de Carvalho