CARTEIRA DE SENHORA
DIA 79
Não se dá bem com o calor, a carteira, maldiz o clima e cai nuns delírios incompreensíveis. No papelinho do costume descobri garatujas que percebi serem impropérios dirigidos à minha pessoa, relacionados com qualquer coisa como quebra de contrato, usurpação e deturpação temática e acusações desse ou maior calibre, ameaçando-me de processo num tribunal lá no país das carteiras onde pode constituir advogado. Quando a levar comigo para o campo acalmará.
Dantes até havia um certo descanso da política por estas alturas. Agora nem no Verão nos largam, oferecendo-nos a novidade de uma temporada estival de silly season política.
É verdade que em cada semana podia escrever (como a carteira afinal pretende) sobre as tricas ainda frescas, os últimos descaramentos, lembrar as sem-vergonhices anteriores, conseguir ainda surpreender-me com a desfaçatez e chegar à conclusão de que não há emenda. Por vezes ainda escapam algumas alusões mais actuais, mas a distância com que olho para esse tipo de notícias é cada vez maior. Só vêm confirmar o que sabemos há muito tempo e um olhar longínquo leva-me à raiz do problema, não se dilui nos detalhes da rama. O inconveniente, como já perceberam, é a inevitabilidade de me repetir.
As tricas e as trocas-baldrocas não me afligem. O que me aflige são outras coisas. As que observo com precisão por não perder tempo com os microcosmos políticos. Sou entusiasta incondicional de microcosmos sendo estes a fatídica excepção. Daí que as minhas aflições sejam de outra estirpe.
Aflige-me o buraco negro chamado Europa sorvendo soberanias como quem brinca ao monopólio, aproveitando sorrateiramente, em tempos de crise, as distracções e fraquezas.
Aflige-me este monopólio de representação política que fatalmente conduziu ao nepotismo e à corrupção, ao namoro e casamento com pompa e circunstância entre o negócio e a política, com sinistros padrinhos cuja morada fixa devia ser uma cela.
Aflige-me a centralização forçada e a destruição sistemática, usando caminhos desleais e justificações torpes, de pessoas, aldeias e culturas (um verdadeiro genocídio) no que sobra do interior de Portugal.
Aflige-me a insensibilidade, a indiferença e o desconhecimento total do país e dos seus povos tomando Portugal como Lisboa em qualquer decisão.
Aflige-me a incapacidade da justiça e a pobreza da educação.
Remediadas estas aflições podia então recorrer ao microscópio à procura de afliçõezinhas.
Quanto aos meninos das tricas deviam estar todos de castigo. Ah! Lembro-me agora que já não se usam os castigos, não são considerados pedagógicos. Será por isso que assim penamos?
Leonor Martins de Carvalho
<< Home