CARTEIRA DE SENHORA
DIA 83
Recostada numa espreguiçadeira, de chapéu de palha e óculos escuros, uma bebida de duvidosa cor pousada em mesinha ao lado, a carteira abraçou e adoptou o vocábulo férias em todo o seu esplendor, ignorando sobranceiramente as minhas tarefas.
Quem tem férias, aproveita-as como pode e sabe. Desfruta os dias todos no mesmo local ou vai estando às pinguinhas em cada sítio, aterra nos mesmos cantinhos seguros de há gerações ou vagueia, aventureiro, pelo desconhecido, quer seja na praia, no campo, na selva ou na cidade, fora ou dentro do país. Todas têm sabor ainda que não o mesmo.
São doces as memórias das férias que fui tendo mas, por variadas razões incluindo aquelas em que estão a pensar, há muito que não largo as raízes. Relembro aqui outras férias, tempos antigos, o clã reunido, a minha avó sobretudo, as tradições, os gestos aprendidos com a Chica e o Adriano Lourenço para tarefas já quase perdidas na voracidade destes tempos que não conhecem a palavra vagar nem a sabedoria de antanho.
Há sempre trabalho, mas como bem sabem, não é a mesma coisa. E com uma qualquer melhoria, mesmo mínima, na casa ou no jardim, conquisto o Mundo.
Confesso que, por vezes, o trabalho, o outro, ainda tem o atrevimento de vir espreitar e pairar um pouco na mente, mas é vencido em batalha leal pelo prazer do dolce farniente e da libertação do relógio.
Além disso, se realmente o quisermos, podemos fingir viver no País do nosso contentamento. Sem politiquices e negócios que nos dão volta ao estômago.
Não há nada que pague o pão à porta, o sapateiro inventivo com solução para tudo, os passeios turísticos na zona, os bailes de Verão, comprar papel de carta avulso, ouvir histórias antigas, bater com a aldraba em casa sem campainha, a hospitalidade do bolo de mel e do licor especial mesmo em visita surpresa, ralharem connosco pelas traquinices de pequena, partilhar memórias, escutar conselhos.
Não há nada que pague a rega do fim do dia, o cheiro a lavado depois, o banho no pequeno tanque após um dia de calor infernal, encontrar os carvalhinhos que rebentaram, beber pelo cocho a água sempre gelada da fonte, reconhecer nos lençóis os monogramas de várias gerações, o desabrochar repentino das beladonas, o regresso dos pássaros ao fim da tarde, o cão a pedir asilo em noite de trovoada, as leituras sossegadas, comer pêras e pêssegos da quinta, ir às amoras, as sestas.
Não há nada que pague uma noite calma de Verão na varanda, ouvindo a conversa da brisa, o silêncio cheio dos ruídos certos, o deslizar lento do tempo pelas horas.
Queremos que sejam eternos esses momentos. Guardá-los no regaço da memória. E depois, sentarmo-nos nele, para sempre.
Leonor Martins de Carvalho
Recostada numa espreguiçadeira, de chapéu de palha e óculos escuros, uma bebida de duvidosa cor pousada em mesinha ao lado, a carteira abraçou e adoptou o vocábulo férias em todo o seu esplendor, ignorando sobranceiramente as minhas tarefas.
Quem tem férias, aproveita-as como pode e sabe. Desfruta os dias todos no mesmo local ou vai estando às pinguinhas em cada sítio, aterra nos mesmos cantinhos seguros de há gerações ou vagueia, aventureiro, pelo desconhecido, quer seja na praia, no campo, na selva ou na cidade, fora ou dentro do país. Todas têm sabor ainda que não o mesmo.
São doces as memórias das férias que fui tendo mas, por variadas razões incluindo aquelas em que estão a pensar, há muito que não largo as raízes. Relembro aqui outras férias, tempos antigos, o clã reunido, a minha avó sobretudo, as tradições, os gestos aprendidos com a Chica e o Adriano Lourenço para tarefas já quase perdidas na voracidade destes tempos que não conhecem a palavra vagar nem a sabedoria de antanho.
Há sempre trabalho, mas como bem sabem, não é a mesma coisa. E com uma qualquer melhoria, mesmo mínima, na casa ou no jardim, conquisto o Mundo.
Confesso que, por vezes, o trabalho, o outro, ainda tem o atrevimento de vir espreitar e pairar um pouco na mente, mas é vencido em batalha leal pelo prazer do dolce farniente e da libertação do relógio.
Além disso, se realmente o quisermos, podemos fingir viver no País do nosso contentamento. Sem politiquices e negócios que nos dão volta ao estômago.
Não há nada que pague o pão à porta, o sapateiro inventivo com solução para tudo, os passeios turísticos na zona, os bailes de Verão, comprar papel de carta avulso, ouvir histórias antigas, bater com a aldraba em casa sem campainha, a hospitalidade do bolo de mel e do licor especial mesmo em visita surpresa, ralharem connosco pelas traquinices de pequena, partilhar memórias, escutar conselhos.
Não há nada que pague a rega do fim do dia, o cheiro a lavado depois, o banho no pequeno tanque após um dia de calor infernal, encontrar os carvalhinhos que rebentaram, beber pelo cocho a água sempre gelada da fonte, reconhecer nos lençóis os monogramas de várias gerações, o desabrochar repentino das beladonas, o regresso dos pássaros ao fim da tarde, o cão a pedir asilo em noite de trovoada, as leituras sossegadas, comer pêras e pêssegos da quinta, ir às amoras, as sestas.
Não há nada que pague uma noite calma de Verão na varanda, ouvindo a conversa da brisa, o silêncio cheio dos ruídos certos, o deslizar lento do tempo pelas horas.
Queremos que sejam eternos esses momentos. Guardá-los no regaço da memória. E depois, sentarmo-nos nele, para sempre.
Leonor Martins de Carvalho
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