CARTEIRA DE SENHORA
DIA 93
A carteira está quase a perder o pio, mas ela que não me venha falar em bloqueios e síndromes de páginas em branco. Quem não leu já sobre isso quarenta milhões de vezes? Nenhuma se aplicou a uma carteira. Recuso tal síndrome.
A página em branco está lá para ser preenchida. Nas reuniões, acaba por ser com bonecos (não posso chamar desenhos àqueles arremedos), entre eles muitas cabeças de cavalos, cujos traços básicos acabei por aprender, mesmo sem jeito, copiando devota e diligentemente as que via a minha mãe desenhar, tal era a minha obsessão por cavalos.
Numa página de Word no computador não posso desenhar aquelas cabeças de cavalos. Só cabem palavras e nem sequer com a minha horripilante caligrafia. O acto físico da escrita perde-se. Não se desenham letras, teclam-se. Martelam-se, sem se esculpirem.
Assim, começo quase sempre por escrever em bloquinhos que a carteira vai carregando, nem por isso carinhosamente porque se desfazem num ápice. Só então me entrego à tecnologia. E mesmo depois de aí ter escrito qualquer coisa, preciso de imprimir e, à mão, acrescentar e riscar, riscar e alterar.
As palavras vão-se alinhando. As frases, mal ou bem lá se encontram, cumprimentam-se e seguem caminhos imprevistos, em aventuras inauditas.
Já Portugal não é uma página em branco. Tentativas para nos convencerem disso não faltam, sempre que uns complexados, em deslumbre, se julgam heróis de uma qualquer nova História, a inaugurar eras gloriosas de um novo Mundo, como foi na entrada na CEE, no Euro, com os Tratados…
Mas não é. Portugal são cerca de novecentos volumes de trezentas e sessenta e cinco páginas escritas com sangue, suor e honra. E cada página nova, a de hoje como as do porvir, tem como marca de água um resumo desses volumes.
Nada do que é escrito agora apaga, rasga ou queima a marca indelével. Somos e seremos também aquilo que fomos. É bom que ninguém esqueça.
Leonor Martins de Carvalho
A carteira está quase a perder o pio, mas ela que não me venha falar em bloqueios e síndromes de páginas em branco. Quem não leu já sobre isso quarenta milhões de vezes? Nenhuma se aplicou a uma carteira. Recuso tal síndrome.
A página em branco está lá para ser preenchida. Nas reuniões, acaba por ser com bonecos (não posso chamar desenhos àqueles arremedos), entre eles muitas cabeças de cavalos, cujos traços básicos acabei por aprender, mesmo sem jeito, copiando devota e diligentemente as que via a minha mãe desenhar, tal era a minha obsessão por cavalos.
Numa página de Word no computador não posso desenhar aquelas cabeças de cavalos. Só cabem palavras e nem sequer com a minha horripilante caligrafia. O acto físico da escrita perde-se. Não se desenham letras, teclam-se. Martelam-se, sem se esculpirem.
Assim, começo quase sempre por escrever em bloquinhos que a carteira vai carregando, nem por isso carinhosamente porque se desfazem num ápice. Só então me entrego à tecnologia. E mesmo depois de aí ter escrito qualquer coisa, preciso de imprimir e, à mão, acrescentar e riscar, riscar e alterar.
As palavras vão-se alinhando. As frases, mal ou bem lá se encontram, cumprimentam-se e seguem caminhos imprevistos, em aventuras inauditas.
Já Portugal não é uma página em branco. Tentativas para nos convencerem disso não faltam, sempre que uns complexados, em deslumbre, se julgam heróis de uma qualquer nova História, a inaugurar eras gloriosas de um novo Mundo, como foi na entrada na CEE, no Euro, com os Tratados…
Mas não é. Portugal são cerca de novecentos volumes de trezentas e sessenta e cinco páginas escritas com sangue, suor e honra. E cada página nova, a de hoje como as do porvir, tem como marca de água um resumo desses volumes.
Nada do que é escrito agora apaga, rasga ou queima a marca indelével. Somos e seremos também aquilo que fomos. É bom que ninguém esqueça.
Leonor Martins de Carvalho
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