sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

CARTEIRA DE SENHORA

DIA 99 

Este foi o segundo Natal da carteira. Gosta bastante, mas nem imagina o que um Natal nos evoca de memórias. Da festa mas também dos que já não estão.

Sou sortuda. Sempre celebrei o Natal. Diria vários, até. Diferentes na celebração, iguais no significado.

Na véspera, na família do pai, avó, doze netos e respectivos pais, era um Natal com presépio e A árvore, majestosa e dominadora do olhar, com posterior direito a lugar no jardim, em perfeita reciclagem antes sequer de alguém pensar que tal coisa existia. Cantava-se em português e alemão, naquela família meio espanhola. Na árvore estavam pendurados guarda-chuvas de chocolate, um para cada neto, e nós esperávamos gulosamente a hora da sua distribuição. Terei ido algumas vezes à missa do Galo, mas poucas. A mãe levava-nos à missa do dia.

De manhã era a correria para os sapatos na ânsia de ver se o Menino Jesus tinha deixado um presente. Era o único dia do ano em que acordávamos cedo de bom grado. Já contei algures sobre um certo Natal em que a mãe nos resolveu presentear com instrumentos musicais de brinquedo (uma flauta, uma viola e um tambor) pensando, na sua inocência, serem ajuda eficaz no nosso despertar para a música. Jurou para nunca mais, porque lhe entrámos quarto adentro logo de manhãzinha, cada qual com o seu instrumento, num chinfrim indescritível, destruindo irremediavelmente o descanso da noitada anterior.

No dia 25, o almoço era outra vez com a família do pai e à tarde, visitávamos uma tia-avó que seguia a tradição açoriana do Menino Jesus, vestido de branco, com sementeiras de trigo ao lado, já germinado por esses dias. Durante a visita não perdíamos o circo Billy Smart, tradição natalícia da televisão, na altura. Para sempre ficou associada a tia-avó ao circo Billy Smart

O jantar ficava para o lado da mãe. Avó, seis filhos e dezasseis netos. Aqui não havia árvore, só um presépio, montado em cima de uma cómoda. Ao lado da avó, que nos dava o exemplo, rezávamos de joelhos ao Menino e cantávamos o “Alegrem-se os céus e a terra”. Mesa gigante e peru vindo do Alentejo, visto dois dias antes a passear no jardim tropeçando de bêbado contra os buxos. Os nossos muitos tios encarregavam-se de tornar essa noite na mais divertida do mundo, sobretudo durante a distribuição dos presentes, e os primos eram compinchas das mil e uma brincadeiras possíveis pelos muitos recantos da casa. Não havia as tecnologias do umbigo, nessa altura. E o serão continuava, connosco absortos nas conversas dos adultos, interessantes, inteligentes e divertidas, sempre acompanhadas de desenhos, que espreitávamos por entre os buracos deixados pelos seus braços ou nos intervalos das cadeiras à volta da camilha.

São os avós o alicerce da família. São as casas dos avós os quartéis-generais do Natal. Com o seu desaparecimento os Natais foram sendo reorganizados e divididos, mas não esqueceremos nunca aqueles. Os grandes. 

A diminuição do tamanho das famílias e das casas vai tornando mais difícil reviver estes Natais de outrora. São outros os Natais. 

Mas em todos eles e para todos nós há uma certeza. Nasceu-nos um Menino. A Luz.

Leonor Martins de Carvalho