quarta-feira, 19 de setembro de 2018

A PROPÓSITO DO CENTENÁRIO DE FRANCO NOGUEIRA

Há-de passar entre os pingos da chuva o centenário de Franco Nogueira. Oriundo da esquerda literária impressionista, era um republicano jacobino na linha de Norton de Matos, defensor intransigente da integridade territorial do Estado. Sejam quais forem as avaliações políticas e ideológicas, a verdade é que, com ele, Portugal teve pela última vez uma política externa, o que é diferente de ter relações externas e fazer visitas oficiais ao estrangeiro.
Um país é um agregado de mistérios e um sistema de certezas íntimas, mais ou menos partilhadas pelos seus nacionais. Ensinou-nos Franco Nogueira que política externa é fazer projectar, para lá da fronteira, aquelas certezas. É impor a terceiros a realidade nacional. É tentar transformar um consenso nacional num consenso internacional. Assim, uma política externa digna desse nome não pode basear-se em caprichos, emoções, afinidades ideológicas ou preferências partidárias. Se uma política externa corresponde, como deve, aos interesses permanentes de uma nação, não pode ser alterada porque no governo de um país se sucede um partido a outro. A este propósito lembrava ele, antigo cônsul-geral em Londres, que tanto em Portugal como em Inglaterra subsiste há mais de 600 anos a aliança luso-britânica.
Talvez por isso aceitou em 1961 a pasta dos Negócios Estrangeiros, quando nada à partida o talhava para colaborador de Salazar. Os velhorros do regime, com o Soares da Fonseca à frente, foram logo fazer queixinhas ao ditador.
Franco Nogueira desempenhou-se da função de forma notável. Ribatejano de Vila Franca de Xira, habituado a ferros e a touros, aguardou com calma na ONU e noutros antros a cornadura reluzente dos adversários. Enfrentou-os de pampilho em punho. Nunca andou lá por fora de mão estendida a mendigar fins-de-mês ou "fundos estruturais". Era um homem livre e desinibido — podia ser mesmo malcriado e rude, como eu gosto. Corria os interlocutores a impropérios quando era preciso.
Inscrevia-se na melhor tradição diplomática de Portugal, país católico e temente a Deus, mas que se for necessário excomunga o Vaticano e manda à merda o Papa. Desde o século XII andamos à cabeçada com essas entidades internacionais que nos são impingidas como o imperativo moral e ideológico de cada época. Tivemos sempre problemas com esses areópagos e organizações — da Santa Sé à ONU — onde se condenou Portugal porque não aceitava os ideais de outros, não seguia os princípios em voga formulados por outros, não cumpria as normas que outros impunham à comunidade das nações.
Sei que isto já não é assim. Agora somos "alunos exemplares" da Europa. Tudo o que nos mandam fazer, nós fazemos — o lápis na mão, a linguazinha de fora. Franco Nogueira não teria hoje lugar na diplomacia portuguesa. É suficiente saber dizer "yes" para singrar na carreira.
Aluno do embaixador Teixeira de Sampaio, cumpriu o que a ética exige em matéria de política externa e assentou as conversas travadas com os representantes de outros países. Os "Diálogos Interditos", publicados em 1979, constituem o diário da sua acção de governante, o registo das estratégias, conversações, argumentos, propostas e contrapropostas. Os seus sucessores, os que revogaram a sua política externa, os que o enjaularam em Caxias, os campeões da democracia e da transparência, decerto registaram também por escrito as conversas, as negociações e os argumentos que utilizaram na defesa intransigente dos interesses portugueses. Estou mortinho por ler esses registos, que já deviam ter sido publicados, tal como elaborados na altura. Só para apreciar a inteligência e o sentido nacional desses outros homens.

Bruno Oliveira Santos