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O Urbanismo Modernista e o Novo Urbanismo (Parte III)
Terminada a II Guerra Mundial e nos anos que se seguiram, o urgente esforço de reconstrução do território europeu, principalmente as suas muitas cidades devastadas pelo conflito, traduziu-se numa série de programas de investimento a larga escala nos países mais afectados, como foram a Inglaterra, a Alemanha, a França a Bélgica e a Holanda. Nesses países, assim como, de uma forma geral e pelo menos em certa medida, nos outros países europeus ocidentais menos ou nada atingidos, como foi o caso português, esse enorme esforço, que se prolongou na verdade, ininterruptamente, por cerca de três décadas com o patrocínio maioritário de Estados-providência, foi um processo altamente dinâmico em que as sempre crescentes necessidades de novos alojamentos se ficaram a dever não só às destruições da guerra mas também ao aparecimento continuado de importantes mudanças demográficas tais como superiores natalidades e menores mortalidades, a desruralização progressiva, a mudança dos hábitos familiares e os novos movimentos migratórios.
Naquela primeira conjuntura de emergência, após a guerra, os decisores responsáveis pelo planeamento urbano em cada país abraçaram, qual solução fatal e milagrosa, de uma forma geral e com variações geográficas nas suas formas de concretização, o essencial da doutrina da Carta de Atenas (CIAM, 1933), ou seja, o já mais que uma vez referido (na Parte I e na Parte II deste texto) zoning, que passou a ser, de facto, por substituição das legislações anteriores, a regra geral do urbanismo oficial no pós-guerra. E apesar de todas as evidências que o têm vindo a desaconselhar cada vez mais, o zoning tem sido ciosamente conservado nas legislações nacionais até aos nossos dias. De facto, o típico ambiente construído resultante da sua aplicação, que numa primeira fase de novidade se apresentou como paradigma de progresso e de excitante modernidade, é hoje e de há já muito de todos bem conhecido e experimentado e caracteriza-se precisamente pela aflitiva falta de carácter cívico e urbano, de escala e de qualidade estética necessárias ao equilíbrio humano, de real funcionalidade e sustentabilidade. O tipo de redes viárias desenhadas quase exclusivamente para supostamente satisfazerem os requisitos funcionais do tráfego automóvel entre zonas funcionais separadas - a habitação, o trabalho, a cultura e lazer, etc. - obrigam na verdade, neste sistema, a constantes, penosas e anti-económicas deslocações pendulares e constituem, frequentemente, barreiras físicas inconvenientes dentro da própria cidade.
Por outro lado, as tipologias urbanísticas mais adoptadas (sumarizadas, grosso modo, no modelo "britânico", mais ligado à tradição da Cidade-Jardim, e no modelo "continental", mais directamente tributário das orientações da Carta de Atenas) ignoraram ambas o carácter da rua e da praça tradicionais - não só funcional, de usos mistos, como morfológico e simbólico, de espaços públicos claramente definidos e limitados não só pelos edifícios utilitários e privados como também por alguns edifícios públicos e monumentais, com hierarquia e critério paisagístico. O abandono do modelo tradicional de ruas, praças e quarteirões e o recuo sistemático das construções, ou dentro de lotes ou em espaços abertos, muitas vezes apenas servidas por acessos desligados (os cul-de-sac), conduzem com demasiada frequência à bárbara fragmentação do espaço (sub)urbano, pela multiplicação aparentemente arbitrária das mais variadas construções (circulemos pelo eixo Norte-Sul de Lisboa ou pela VCI do Porto, p. ex.), originando ambientes por força desorientadores e desumanos.
A primeira contestação parcial da Carta de Atenas surgiu dentro do próprio Movimento Moderno, já na década de 50, com o fim dos CIAM - Congressos Internacionais de Arquitectura Moderna, seguido mais tarde pelas vozes dissonantes de vários autores considerados já pós-modernistas, como foi o caso do arquitecto italiano Aldo Rossi, (autor do livro L'Archuitettura della Città, 1966) com a sua crítica da contemporânea falta de compreensão da cidade como artefacto humano construído com o tempo, portador de uma memória, e da importância decisiva dos monumentos e do carácter morfológico dos espaços públicos, mormente a rua e a praça, nesse contexto. Mais radical ainda, no pôr em evidência o valor deste último aspecto das morfologias urbanas, foi o arquitecto luxemburguês Robert Krier, irmão mais velho de Léon Krier, no seu influente livro Stadtraum in Theorie und Praxis, 1975. Contudo e como atrás referi, de uma forma geral o decisivo e nefasto zoning, pela sua própria lógica irreformável, incompatível e hostil à cidade tradicional, foi continuando a vigorar nas legislações e na prática.
Paralelamente, no entanto, a cidade tradicional europeia e os seus insubstituíveis valores vivenciais, nunca deixaram de estar presentes nas intenções de muitos arquitectos e urbanistas, por norma ignorados, para não falar já das suas presenças na vida vivida ou no coração da esmagadora maioria dos cidadãos. E começaram também a surgir, com o tempo, notáveis exemplos de novas e inovadoras iniciativas particulares de inspiração tradicional, ao arrepio das políticas oficiais modernistas e da ortodoxia cultural "urbanística e arquitectonicamente correcta". Entre outros projectos urbanos pioneiros e dignos de menção, ocorre-me referir os dois seguintes, a título de exemplo:
A nova vila marítima provençal de Port Grimaud, pelo francês François Spoerry, 1964;
e o Pueblo Español, em Palma de Maiorca, que é uma espécie de resumo da Espanha concentrada num bairro, muito à semelhança do nosso Portugal dos Pequenitos mas em ponto grande, pelo arquitecto espanhol Fernando Chueca Goitia, 1965.
Em 1984 teve início o notável conjunto urbano de Richmond Riverside, no Rio Tamisa, pelo inglês Quinlan Terry, e a 30 de Maio do mesmo ano o Príncipe Carlos de Inglaterra proferiu em Hampton Court um célebre discurso, também conhecido pelo "the carbuncle speech", que imprimiu sem dúvida um importante impulso ao mais recente movimento de afirmação da arquitectura e do urbanismo tradicionais na Europa. Em 1988, Léon Krier - que tinha estado na Florida com Andrés Douany, onde com este concebeu e lançou a construção da nova vila de Seaside, para além da infuência que exerceu no surgimento do novo movimento New Urbanism, na América - desenhou o plano geral da nova cidade de Poundbury, no Ducado de Cornwall, no Dorset, com o patrocínio do Príncipe Carlos, a qual tem vindo a ser, desde o início da sua construção, em 1993, e até agora, quando ainda só está completada cerca de 30% da sua dimensão total (de 4 bairros autónomos integrados) com conclusão prevista para 2025, um caso paradigmático de sucesso e uma das principais referências do renovado urbanismo de inspiração tradicional a nível europeu.
Detendo-me um pouco no caso de Poundbury, que é uma extensão da pequena cidade de província de Dorchester, e citando um texto de apresentação do Ducado de Cornwall, observa-se que a sua filosofia...«não diz só respeito à arquitectura, como muitas vezes se pensa;...a sua ideia central é que um projecto desta dimensão deverá incluir não apenas casas e apartamentos mas também locais de trabalho, lojas, escolas, locais de lazer e encontro comunitário - delicadamente organizados, ao contrário da maior parte dos mais recentes programas de habitação, sendo para tal necessário que os projectistas consigam criar paisagem natural e urbana e um sistema de ruas e espaços públicos que possam encorajar o crescimento de uma comunidade integrada». O mesmo texto apresenta dez princípios estratégicos de actuação que incluem preocupações tais como a compreensão e integração no lugar; a hierarquia a considerar entre os edifícios e os significados relativos dos seus elementos; a escala humana dos edifícios; a harmonia dos edifícios entre si e com o ambiente; a contenção física das fronteiras do conjunto e dos espaços urbanos definidos (ruas, praças e largos); a utilização exclusiva de materiais naturais da região, não estandardizados; uma decoração artesanal que realce a singularidade de cada edifício; um tratamento artístico generalizado, com simbolismo e significado; a escolha criteriosa da sinalética e da iluminação; e por último, mas muito importante, a promoção do sentimento de orgulho e de participação da comunidade, desde o início.
Tal como no caso do New Urbanism, na América, o almejado ressurgimento da cidade europeia será pautado, como temos visto - apesar das diferenças ditadas pelas respectivas tradições culturais - pelos mesmo conjunto nuclear de princípios básicos, ou seja, a criação de comunidades integradas e participativas, idealmente com variedade sócio-económica, cultural e etária, através de vizinhanças e bairros bem definidos e minimamente autónomos, com usos mistos e não só a habitação, com dimensões ditadas pela facilidade geral de acesso pedonal ao centro (tempo típico de acesso não superior a 5 minutos), e com prioridade para o peão sobre o carro; os tipos de malhas urbanas, espaços públicos, escalas, arquitecturas e materiais, são também, naturalmente e de preferência, os da cidade tradicional, não por qualquer arbítrio de cariz ideológico ou meramente estético, mas porque sempre se têm revelado, de facto, os mais eficazes, sustentáveis e humanos.
Hoje em dia, a corrente do urbanismo e da arquitectura neo-tradicionais forma já uma apreciável rede mundial integrada, com mútua influência entre os seus dois grandes polos americano e europeu. Uma panorâmica do seu desenvolvimento recente na Europa, ainda minoritário relativamente às correntes modernistas dominantes, apesar dos progressos, pode ser vista, por exemplo, no sítio electrónico do forum internacional A Vision of Europe, sedeado em Bolonha. Pelas suas realizações até agora, a frente e o grosso do movimento tem-se distribuído por Inglaterra, França, Alemanha, Bélgica, Holanda, Itália e Espanha.
Como se observa, Portugal situa-se ainda bastante na cauda desses progressos. Até quando?
Francisco Cabral de Moncada
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