quarta-feira, 13 de abril de 2011

SEM AGENDA

Da Democracia e suas Formas (Parte III -- Formas da democracia)

Continuamos hoje a transcrição de uma parte representativa do ensaio Problemas de Filosofia Política: Estado -- Democracia -- Liberalismo -- Comunismo, Arménio Amado Editor, Coimbra, 1963, por Luís Cabral de Moncada (1888 - 1974). A Parte I -- Posição do problema; A ideia de democracia, e a Parte II -- Os valores da democracia, dessa transcrição, foram aqui apresentadas nas duas semanas passadas.

«Entendemos por aspecto político da democracia, conforme já acima foi frisado, o da escolha dos meios mais apropriados para esta se realizar na sua ideia, fins e valores essenciais. Não a questão da legitimidade e valor ético absoluto desses meios, mas a questão da sua conveniência com relação aos fins em vista. Trata-se, em suma, de justeza e não de justiça. É o que aliás se passa com todas as outras ideias, fins e valores, próprios dos diferentes ramos da cultura. Há também sempre neles, dum modo parecido, dum lado a ideia e do outro os meios, muitos deles técnicos e oportunísticos, para os alcançar. Há certos processos e sobretudo certos critérios de compromisso para conseguir, muitas vezes, chegar ao resultado que se tem em vista. O princípio aqui dominante é invariavelmente sempre o da adaptação dos meios aos fins, em que só estes, quando últimos, são da competência da filosofia, enquanto que os primeiros o são preferentemente da ciência. A determinação de tais meios, processos e critérios, é mesmo, rigorosamente, na grande maioria dos casos, mais obra de arte do que de ciência; mais intuição das condições e exigências da vida, em cada caso, do que rigor lógico. E assim as coisas se passam também no problema da democracia.

Não basta, com efeito, saber que no Estado deve ser -- ou antes, tem sido sempre procurado -- acima de tudo, o bem comum do maior número ou da generalidade dos cidadãos. Não basta saber que para se obter esse resultado, é, ou sempre se supôs ser, indispensável atribuir, em princípio, a todos, ou só à generalidade deles, uma certa participação ou intervenção na vida pública. Nem basta ainda saber -- e isto é o mais importante -- que estes, os homens, jamais poderão ser convenientemente tratados, justamente como homens, como pessoas, se não lhes for garantido um certo quantum de liberdade e se não for criada, ao mesmo tempo, uma certa condição de igualdade no gozo e fruição dum mínimo de vantagens, bens e direitos. É preciso ainda, depois disto, saber, em segundo lugar, qual a melhor maneira de alcançar tudo isto, para a democracia ser um facto: como, até onde e por que meios deve ela realizar-se. Sobretudo é preciso saber em que doses de percentagem deverão combinar-se a liberdade e a igualdade, não só nas relações entre as duas, como nas relações entre elas com as outras exigências da autoridade e do bem comum. E mais ainda, por último: saber que um tal saber jamais poderá ter a pretensão de ser universalmente válido, de uma maneira absoluta, para todos os tempos e lugares. Terá de ser um saber referido a cada lugar e a cada momento histórico, a cada tipo de civilização e grau de cultura, determinadamente. Impõe-se-lhe ser um saber o mais possível racional e o menos possível inspirado em ideologias e puros sentimentos. Nem todas as formas democráticas convêm indistintamente a todos os tipos de sociedade e de Estado, a todos os grupos humanos de composição, cultura, homogeneidade social, volume de população e condições demográficas diferentes. A democracia é fazenda de que podem ser feitos numerosos fatos, embora nunca de medida e padrão únicos, sob pena de aberrante deformação da realidade. E isto, com excepção do demoliberalismo ideológico dos sécs. XVIII e XIX, é o que dum modo geral têm sempre tentado fazer, em maior ou menor grau, com mais ou menos consciência daqueles fins de que falamos, as diferentes democracias nas suas respectivas teorias jurídicas e políticas.

Ninguém, com efeito, desconhece que há e tem havido em todos os tempos inúmeras formas de governo democrático. Já vimos qual o número de condições para se poder falar em tal coisa. Essas formas de governo são muitas e, certamente, não iremos tratar aqui de todas elas. Todos temos ouvido falar, por exemplo, da democracia ateniense; da democracia romana da República e do Principado; das formas democráticas primitivas dos antigos germanos; das organizações municipais e comunais da Idade-Média, e bem assim ainda as tradicionais monarquias limitadas da Europa medieval, com os seus Estados e Cortes Gerais, os seus Parlamentos, as suas Dietas, etc. Todas essas expressões da democracia foram sem dúvida, diversíssimas umas das outras. Corresponderam, como as democracias posteriores, a situações históricas concretas muito diferentes e acharam-se enformadas pelas mais variadas concepções acerca do homem, da sociedade, do mundo e da vida. Na verdade, à primeira vista pouco parece haver de semelhante, como nota ANTÓNIO JOSÉ BRANDÃO, entre a democracia da polís ateniense, a que forneceu a problemática e a temática a PLATÃO e ARISTÓTELES, e aquela a que aludem os De regimine principis e os chamados Specula regis medievais; ou ainda entre a dos homens de 89, a dos nossos jurisconsultos teóricos do séc. XIX, e a democracia britânica -- «meio expediente, historicamente eficaz, de assegurar em face do poder real os privilégios de uma aristocracia ciosa» (1). Isto é indiscutível.

E contudo não será preciso uma grande subtileza para descobrirmos aí, em todas essas formas de governo, um fundo comum -- mesmo que, por vezes, só vagamente balbuciante -- de ideias, aspirações e finalidades sociais. Todas se esforçaram por dizer a mesma palavra amor nas suas diversas línguas sem lá chegarem. Em todas houve diálogo entre governantes e governados através duma representação legítima dos últimos, como condição do bem comum, fundada numa limitação do poder. O nosso país, a Espanha, a França a Inglaterra e a Hungria, entre outros, deram-nos na Idade-Média exemplos, por vezes eloquentes, do que acabamos de dizer. Sempre o bem geral e comum do maior número foi aí tido como fim supremo da república; a generalidade dos cidadãos fez aí ouvir a sua voz; foram respeitadas muitas liberdades locais, e até em muitos casos não deixou de se manifestar já aí o princípio duma tal ou qual igualdade entre os homens dentro de alguns grupos sociais restritos. Exemplos: os casos das beetrias, dos vizinhos dos concelhos e dos foros de certas classes da nobreza. Formas toscas, imperfeitas, embrionárias de democracia, sem dúvida. Os gregos e os romanos praticaram ainda a escravidão. A Europa da Idade-Média, apesar de cristã, conheceu-a também, multiplicou-lhe as formas, e achou-se ainda presa de inúmeras manifestações de desigualdade, provenientes das diversas etnias, dos estamentos, das corporações e classes fechadas, dos privilégios do nascimento, da intolerância religiosa, do feudalismo, etc. Mas, seja como for, uma coisa é certa: a ideia duma democracia no seu mínimo de elementos, conquanto ainda cativa só dentro de minúsculos quadros de convivência grupal, lá estava já, inquestionavelmente, em germen, no âmago desse fervilhar de formas sociais primitivas em ebulição. Viu isto bem HERCULANO a respeito das nossas instituições municipais. Todas essas formas democráticas de que falamos conheceram, é certo, as suas crises ou foram, todas elas, se se quiser, permanente crise do homem antigo e medieval no seu esforço de construção da polis. Algumas dessas crises foram crises de crescimento, resultantes -- e neste ponto não pode negar-se razão a MARX -- de desajustamentos, a cada passo, entre as formas políticas e as infraestruturas económicas dessas sociedades em movimento: a desagregação do regime feudal; o desenvolvimento do comércio desde o fim da Idade-Média; os começos do capitalismo; os descobrimentos marítimos, etc. Outras foram, porém, crises de morte, vindo então, muitas vezes, aquelas formas a morrer às mãos de outras radicalmente opostas e anti-democráticas, como foram, já dentro da órbita do «Estado moderno», as monarquias absolutas da Idade-Moderna e do Iluminismo. Mas o que não pode ser negado é encontrarem-se aí já, desde a antiguidade clássica até ao barroco europeu, desde a Grécia e de Roma até aos nossos séculos XVII e XVIII, mais do que uma página, geralmente pouco estudada, da história da democracia.

Pois bem: no limite extremo do processo de desenvolvimento deste «Estado moderno» de que acabamos de falar, na transição da sua fase de Estado monárquico absoluto para a do Estado liberal, bem como desta para a do Estado autoritário, primeiro, e do totalitário depois -- mas em estreita ligação com o advento do capitalismo burguês, por um lado, e do socialismo proletário, na sociedade industrial moderna, pelo outro -- é que vêm a achar-se as duas formas mais evoluídas de democracia, nossas contemporâneas, que até hoje nos foi dado conhecer. Referimo-nos à democracia individualista e liberal ou demoliberalismo, duma banda, e à democracia totalitária, popular ou de massas, da outra. Uma foi expressão política mais directa do capitalismo, tornada plenamente consciente só desde o século XVIII -- através, como se sabe, das ideias filosóficas que desembocaram, primeiro na revolução americana de 1776, e logo a seguir na revolução burguesa do 89 francês. A outra é a expressão política do movimento socialista europeu a contar de 1848, hoje, segundo todas as aparências, solidamente implantado na Rússia soviética e na China comunista dos nossos dias.»

...« Pensemos, antes de mais nada, que ambas elas -- quer se trate do liberalismo quer do socialismo totalitário -- não são senão uma consequência necessária, gerada dentro dum único processo histórico: o do desenvolvimento da moderna sociedade industrial capitalista e burguesa, impulsionada pelo progresso técnico, desde os fins do século XVIII, na sua luta contra os sistemas económicos do Antigo-Regime. Este o facto capital. Embora esta afirmação possa parecer, à primeira vista, paradoxal e filha dum excessivo simplismo, supomos contudo que já hoje ninguém duvida deste facto. Ambas estas duas formas democráticas têm uma origem comum e obedecem no seu desenrolar a uma espécie de processo dialéctico económico-social perfeitamente visível e determinável.

Não é necessário citar nem HEGEL nem MARX para ver isto. Bastará, supomos, atentar um pouco, com algum pensamento histórico, na evolução das ideias democráticas desde aquele século. Ninguém viu talvez isto melhor, longe de qualquer filosofia abstracta, em visão aliás verdadeiramente profética, embora partindo rigorosamente dos factos, do que o francês TOQUEVILLE na sua análise da democracia americana, de 1835 (2). Foi ele, quem nos anunciou a gestação da futura democracia totalitária, como que trazida ab ovo nos próprios flancos da velha democracia liberal através da evolução da sociedade industrial. Ou mais explicitamente, se se quiser: a do moderno comunismo russo-soviético, a partir do liberalismo dos colonos anglo-saxões emigrados desde o século XVII para o Novo Mundo.

TOQUEVILLE anunciou-nos já então, com efeito, há mais de um século, que os Estados Unidos da América do Norte e a Rússia, representantes actuais máximos dessas duas formas de democracia -- partindo aliás de princípios diferentes, com concepções radicalmente diferentes e por vias diferentes -- viriam a ser, de facto, um dia, os senhores do mundo (3). E isto porque, segundo ele, esses dois princípios e fins mais elevados da democracia, a liberdade e a igualdade, que na construção teórica dos sistemas conseguem ainda viver entre si numa boa harmonia -- parecendo até, segundo já vimos, pressuporem-se e completarem-se um ao outro -- de facto, na realidade da vida, mutuamente se excluem e contradizem. Um leva ao egoísmo, o outro à servidão. Formam entre si, hegelianamente, como que os termos de uma fatal antítese, a nascer das duas teses opostas, cuja síntese, por mais que a tenhamos procurado, não logramos ver ainda realizada. A luta entre elas, como o grande sociólogo previra, tornar-se-ia ao fim inevitável e trágica. De facto, ela aí está hoje bem patente diante dos nossos olhos. Toda a história da civilização ocidental, durante os séculos XIX e XX, tem sido o teatro dessa luta gigantesca.»

(1) Carta de 28-X-62. É evidente que as dessemelhanças fáceis de reconhecer em todas estas formas democráticas, por muito grandes que sejam, não impedem de as considerarmos expressões de democracia, insertas em contextos sociais muito diferentes, mas com o denominador, comum a todas, da participação dos governados, por direito próprio, na obra dos governantes e do dever destes de os ouvirem.

(2) TOQUEVILLE, De la Démocracie en Amérique, ed. de 1874. Ver particularmente o cap.I da Segunda Parte, do qual transcrevemos: ...«la passion de l'égalité pénètre de toutes parts dans le coeur humain, elle s'y étend, elle le remplit tout entier. Ne dites point aux hommes qu'en se livrant aussi aveuglément à une passion exclusive, ils compromettent leurs interêts les plus chers; ils sont sourds. Ne leur montrez la liberté qui s'échappe de leurs mains... Ils veulent l'égalité dans la liberté et, s'ils ne peuvent l'obtenir, ils la veulent encore dans l'esclavage. Ils souffrirons la pauvreté, l'asservissement, la barbarie, mais ils ne souffrirons pas l'aristocracie»... (pág. 160-161). O sublinhado é nosso.

(3) Ibid., vol. II,pág. 431: ...«l'un (o povo americano) a pour principal moyen d'action la liberté, l'autre (o russo) la servitude. Leur point dedépart est différent, leurs voies sont diverses, néanmoins chacun d'eux semble appelé pas un dessein secret de la Providence á tenir un jour dans ses mains les destinéesdela moitié du monde». Isto foi escrito em 1835.
L. Cabral de Moncada

Francisco Cabral de Moncada