quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

FADO FILMADO

Em Portugal, no ano de 1947, entre as sete longas-metragens produzidas, surge Fado, História d’Uma Cantadeira, que, dez anos depois, virá a ser o primeiro filme exibido pela Televisão Portuguesa, no arranque da RTP.

O seu realizador é Perdigão Queiroga, nascido em Évora, em 1916, e morto fisicamente num acidente de automóvel, em 1980. Este cineasta, depois de uma fase de aprendizagem das técnicas cinematográficas, trabalha como profissional nas áreas da imagem e da montagem. De seguida, em plena II Guerra Mundial, e Golden Age do Cinema Americano, ruma a Hollywood — para os estúdios da major Paramount (uma das cinco maiores empresas de produção cinematográfica dos E. U. A.) —, onde trabalha em montagem. De regresso à Pátria, inicia a preparação de Fado, que será o seu primeiro filme de fundo, numa obra com dezenas de títulos.

A sua filmografia divide-se, como era hábito nos autores clássicos completos, entre documentários (a que hoje chamaríamos «institucionais») e longas-metragens de ficção. Outro ponto alto da sua carreira viria a ser As Pupilas do Senhor Reitor (1961), a partir de Júlio Diniz, e que foi o primeiro filme nacional rodado em cinemascope (formato de ecrã largo).

Mas vamos ao nosso Fado, História d’Uma Cantadeira (1947), de Perdigão Queiroga, que a isso viemos e nisso estamos. Este filme baseia-se, muito livremente, na biografia da grande Amália Rodrigues, então no auge da sua carreira e beleza. Será esta formidável «cantadeira» a protagonizar a fita, com a qual iluminará a tela, como estrela deste melodrama romântico. Para que a musa lusa brilhe, em toda a sua plenitude, muito ajudarão os belíssimos fados de Frederico de Freitas, as letras de Amadeu do Vale, Linhares Barbosa, Gabriel de Oliveira e João Mota, as «sínteses de fados» de Frederico Valério e Jaime Santos, os versos de Silva Tavares e José Galhardo; e, toda esta equipa de luxo, sob a direcção musical de Jaime Mendes.

Abordemos então agora a história, propriamente dita: os cânones do melodrama, herdados — pelo Cinema — da Literatura e do Teatro do século XIX, estão lá todos; e, de uma forma não muito diferente daquela como eram praticados, à época, em Hollywood, mas convenientemente transpostos para a realidade social da Lisboa dos anos 40 do século passado, como se pretende.

Assim, temos uma fadista pobre de Alfama, com um namorado (o guitarrista Júlio — interpretado convincentemente pelo grande Virgílio Teixeira), que, tornando-se famosa, sai do seu bairro, abandonando o apaixonado companheiro e trocando-o pelos círculos da alta-burguesia e da aristocracia de Lisboa. Por fim, depois de peripécias várias, numa trama narrativa bem urdida, temos um final na boa tradição do happy end da Capital do Cinema. Se destaco esta ligação ao cinema clássico narrativo sonoro, que tinha as suas regras ditadas pelos norte-americanos, é porque o filme tem uma desenvoltura própria dos melhores produtos saídos dessas «fábricas de sonhos» que eram os Estúdios de Hollywood.

Perdigão Queiroga junta-lhe ainda os principais ingredientes da Cultura Popular Portuguesa — olhada por alguns arrivistas com desconfiança, pois talvez lhes faça lembrar o berço que renegam —, e, assim, conseguiu fazer um filme que é um dos maiores êxitos de bilheteira — até hoje — do Cinema Português, ao mesmo tempo que recebeu críticas muitíssimo positivas; conjugação esta não habitual. Capas Negras, de Armando de Miranda, desse mesmo ano e também com Amália, foi demolido pela crítica, e com toda a razão, devido ao cinema pobrezinho que revelava.

Neste caso — no nosso Fado —, o pano de fundo de carácter realista com que são pintados os bairros tradicionais de Lisboa, a excepcional representação do galã português de dimensão internacional — Virgílio Teixeira —, o rosto, a voz, e a naturalidade expressiva de Amália, o rigor fotográfico de Francesco Izzarelli, a fluidez da montagem do próprio Perdigão Queiroga — em «estilo invisível», à maneira de Hollywood —, as presenças de António Silva, Vasco Santana, Eugénio Salvador, Tony d’Algy, Raul de Carvalho, e mais uma mão cheia de outros grandes actores, fizeram toda a diferença.

Convém aqui realçar que o Fado e os Toiros são dois mitos permanentes da iconografia nacional; e, se convenientemente levados para a Cinematografia Portuguesa — com um tratamento narrativo e plástico sempre renovado, de acordo com o espírito dos tempos —, podem constituir-se como uma das matrizes estruturais de um verdadeiro género indígena. Os E. U. A. fazem exactamente o mesmo com os seus géneros: Western, Gangsters, Musical. Esta linha do Cinema Português foi, aliás, logo consagrada no primeiro filme sonoro (sonorizado, no entanto, ainda, em França): Severa, de Leitão de Barros.

Em relação a Fado, História d’Uma Cantadeira, diga-se que o Estado Novo — através do SNI, de António Ferro — pareceu gostar a atribuiu-lhe o Grande Prémio, nesse ano de 1947, demarcando-se, deste modo, de Capas Negras, que, apesar de tudo, teve um maior sucesso de bilheteira na época (e mesmo, também, um dos maiores de sempre, até à actualidade).

De facto, António Ferro, com o seu inovador bom-gosto, sabia o que fazia ao distinguir este filme, pois Fado tem tudo: por um lado, uma extraordinária beleza plástica — esse rosto de Amália nada fica a dever aos de outras divas do Cinema Mundial, muito graças ao já referido director de fotografia italiano, que tinha trabalhado no Camões, de Leitão de Barros, e que tem um estilo visual a fazer lembrar o expressionismo alemão; por outro, a banda sonora, já convenientemente aqui destacada, que reunia os melhores autores da música popular portuguesa de então. Finalmente, os diálogos — esse ponto fraco da Cinematografia Nacional — são convincentes e vivos, e ditos com boa dicção, e ainda melhor interpretação, depois de saídos da pena criativa de Armando Vieira Pinto.

E agora vou mas é rever a fita, que fiquei cheio de vontade, e esperar — pessimista, mas esperançoso que sou — que o Cinema Português se reconcilie com o seu público e possa voltar a erguer produções desta dimensão, para que, como neste caso, não abdicando da requintada expressão estética do autor, possa servir, com narrativas escorreitas e simples, temas onde as pessoas realmente se revejam, pois já basta de décadas de divagações umbiguistas, em tom hermético, para consumo próprio (com honrosas excepções, apesar de tudo).

Bem sei que agora, em 2013, já não temos Amália, aqui e ao vivo, nem Virgílio Teixeira — e que falta fazem! —, mas há por cá novos e bons actores — potenciais novas estrelas! Estarão os actores portugueses para sempre fadados a fazer telenovelas em manhoso estilo sul-americano, ou poderão voltar a brilhar em Filmes Portugueses populares e de qualidade?...

A ver vamos.

Nota: Artigo escrito para a revista Alameda Digital. Republicado em novas versões nos blogues Eternas Saudades do Futuro e Jovens do Restelo e no jornal O Diabo.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

CADERNOS INTERATLÂNTICOS (5)


Jacques Bainville, discípulo de Maurras, especialista em política internacional da Action française, é o autor de importantes estudos sobre Bismarck e Napoleão, além de obras de referência como Les conséquences politiques de la paix, na qual prevê, com vinte anos de antecipação, a 2.ª Guerra Mundial; Histoire de deux peuples continuée jusqu´à Hitler; La Russie et la barrière de l´Est; Les Dictateurs, com um capítulo dedicado a Salazar e Portugal – entre outras. O seu  extraordinário poder de análise e dedução capacitaram-no para fazer projecções que vieram a confirmar-se no tablado internacional, fazendo com que ficasse para sempre conhecido como “o historiador do futuro”.  

Habituados que estamos ao mundo do faz-de-conta dos meios de desinformação de massa, aborregados às mistificações dos senhores planetários e dos seus lacaios locais, vale a pena recordar aqui alguns princípios de bom e velho realismo politico, e que constituem a base daquilo a que podemos chamar o “modelo” ou o “método” bainvilleano  para a compreensão do futuro – a saber:

Observação dos factos. Ponto de partida, deve ser realizada na mais absoluta isenção, desprovida de todo parti pris, desapaixonada, desideologizada. Os factos devem ser observados tais como são e não como gostaríamos que fossem.

Princípio de causalidade. Nenhum facto politico surge do nada. É sempre fruto da interacção de uma série de factores que o vão moldando através do tempo, até “madurar” e manifestar-se com todas as suas implicações, sejam elas positivas ou negativas. Estar atento à génese de um facto político pode evitar a surpresa de ver-se a braços com as suas consequências.

Experiência. “Nossa mestra em política é a experiência”, escreveu Maurras.  O conhecimento profundo da História dos povos é essencial para a compreensão do presente. E esse imprescindível estudo do passado implica igualmente penetrar na estrutura mental dos agentes políticos, para poder apreciar – não com os olhos de hoje, mas através de “lentes epocais” – as diferentes opções e a decisão politica efectivamente tomada. Como a politica apresenta necessidades permanentes, importa aprender com a experiência passada e aplicar suas lições e precedentes onde melhor corresponda.

Psicologia humana. De tudo o que muda no mundo, o homem é o que muda menos. Imutáveis na sua natureza, os homens atravessam os séculos com as mesmas paixões, sucumbem às mesmas tentações, comportam-se e reagem da mesma forma em situações similares. 

Em resumidas contas, esta é a “chave de quatro lados” que abre o conhecimento das verdadeiras razões que explicam a História. Alguns homens de génio já a conseguiram utilizar com mestria. 

Até para a semana.

Marcos Pinho de Escobar

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

CARTEIRA DE SENHORA


DIA 56

A carteira, emigrada neste país (teve azar!), pretende intrometer-se e opinar sobre todos os nossos assuntos, especialmente os do momento, na ânsia de se mostrar activa e bem integrada no seu país de acolhimento. Ela que me perdoe, mas o equilíbrio é imprescindível à sanidade mental. Quanto mais revolta e desânimo sinto, maior a necessidade de contrabalançar com temas ao lado.

Já aqui apresentei um pouco da história recente do país das carteiras de senhora (vide dia 38). Faltou caracterizar aquela sociedade, pelo menos como era antes da sua descida aos infernos.

Este célebre país, herdeiro directo das grandes tradições do Reino das cestas e cabazes, é quase uma réplica do país das malas, mas sofreu bastas influências dos países dos sacos e das mochilas. Assim nasceram muitos dos estrangeirismos introduzidos na língua. Ressalte-se que nunca ao longo da sua História estes países tão próximos pensaram em celebrar acordos ortográficos.

O país dos porta-moedas, embora de pequena dimensão e inserido geograficamente no país das carteiras de senhora, constitui região autónoma. Devido à sua capacidade financeira tem um imenso poder, pelo que os Ministros das Finanças do país das carteiras são sempre daí originários.

Naturalmente, o país das carteiras de senhora, para além de características comuns às de países próximos, tem ainda características próprias, pelo que não é uma sociedade tão linear quanto se poderia pensar.

A primeira estratificação acontece à nascença e é simples, tendo a ver com o seu tamanho. Podem assim ser grandes, médias e pequenas. A simplicidade estende-se ao formato, que, com raras excepções, se limita ao quadrangular e ao redondo. Se tivermos em conta os seus membros superiores (já que não possuem inferiores), a divisão mantém-se simples: duas asas, só uma ou nenhuma, com a particularidade de nenhuma carteira voar, nem mesmo as aladas. Só o conteúdo tem essa característica e nos momentos menos adequados.

A distinção que teve grande importância social no passado baseia-se na matéria-prima. Há materiais muito variados, desde o plástico (o que proporciona menor esperança de vida) até ao cabedal, não esquecendo o tecido, o verniz e a camurça.

Na divisão seguinte a confusão é total. Em cada tamanho, formato ou material podem ser encontradas todas as cores. Não só as primárias. Não, isso não chega para uma carteira de senhora. Tem de haver carteiras com cores secundárias, terciárias e por aí adiante, admitindo-se até a coexistência pacífica de várias. Reside aqui uma diferença para o país das malas, que é bem mais sóbrio. Daí que consiga ter a dívida mais controlada, mas convenhamos que é cinzentão e triste.

Só que as aparências iludem. Tudo isto são as carapaças, é o recheio que conta. O conteúdo é a alma da carteira. Embora existam carteiras algo (não muito) organizadas, a esmagadora maioria é adepta do caos. Mas o caos não é um qualquer. Cada uma tem direito ao seu. O seu caos único.

Finalmente, a influência da região autónoma dos porta-moedas é tal, que reduz qualquer carteira a três estados durante a sua vida: recheadas, meio cheias e vazias. Neste momento quase todas se encontram no terceiro.

Noutra semana de revolta e desânimo ainda voltarei a este curioso país. Parece que não tarda.

Leonor Martins de Carvalho

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

AMOR À ARTE

António Lopes Ribeiro (Lisboa, 1908 — Lisboa, 1995) é cineasta, jornalista e crítico de Cinema. Entenda-se aqui a palavra cineasta na sua acepção total: Lopes Ribeiro foi realizador, argumentista, produtor, director artístico e montador. Temos, assim, um homem que respira Cinema.
Estudou engenharia no Instituto Superior Técnico, mas logo o abandonou, em 1929, para se entregar à Sétima Arte a tempo inteiro.
Nos anos 20, dedica-se ao jornalismo; e, estreia-se na crítica cinematográfica no Diário de Lisboa com uma página própria, «Arte Cinematográfica — O Claro-Escuro Animado», onde usa as iniciais A. R. e o pseudónimo Retardador, a partir de 1927; esta rubrica terá sido a primeira — em todo o Mundo — dedicada exclusivamente ao Cinema num jornal diário. De seguida, funda e dirige as revistas especializadas Imagem (1928), Kino (1930) e Animatógrafo (1933). Colabora ainda, ao longo de toda a sua longa vida, nas seguintes publicações, entre outras: A Bola, Diário Popular, Cine-Jornal, A Revista de Portugal e A Rua.
Inicia-se como realizador, em 1928 — aos 20 anos de idade —, com o documentário artístico Bailando ao Sol. Lança-se, a partir daí, numa carreira que terá mais de 100 títulos e que só será interrompida — à força! — em 1974. Nessa vasta Obra, encontramos documentários, adaptações literárias, dramas, e comédias. O arranque da sua actividade cinematográfica encontra-se fortemente enraizado nos conhecimentos técnicos que adquiriu em visitas aos estúdios alemães e russos (um bom exemplo do amor à arte e à estética quebrando fronteiras políticas e ideológicas).
Foi, enquanto teórico, um apologista do Cinema Sonoro, contrariando muitos dos seus camaradas de ofício da época, que viam no Sonoro um desvirtuar do Cinema como forma de expressão artística, pois passaria a ser — segundo eles — um mero meio de reprodução da realidade. Lopes Ribeiro viu, antes de todos, que o Som — se bem utilizado — poderia ajudar o Cinema a crescer como Arte. Assim foi.
Os seus documentários são, na sua maior parte, encomendas do Estado Novo, através de vários Organismos. Mostrar-se-á, neste domínio, um Autor rigoroso, do ponto-de-vista histórico, e com um fino sentido estético. Destacaria, nesta área, os seguintes documentários: A Exposição do Mundo Português (1941), Inauguração do Estádio Nacional (1944), A Morte e a Vida do Engenheiro Duarte Pacheco (1944), O Cortejo Histórico de Lisboa (1947), Jubileu de Salazar (1953), Rainha Isabel II em Portugal (1957). Se quisermos conhecer a História de Portugal do Século XX, teremos de vê-los a todos — dezenas de títulos, de semelhante nível técnico-artístico e igual valor histórico, repartidos entre curtas-metragens e longas-metragens documentais. Um olissipógrafo que se preze deverá visionar os seus documentários sobre Lisboa, antes de escrever o que quer que seja sobre a antiga Capital do Império.
Quanto ao Cinema de ficção, Lopes Ribeiro saberá integrar muito bem nas suas equipas um conjunto de luxo de técnicos provenientes da Alemanha, e assegurar, desta forma, um sentido visual apurado — na luz, nos enquadramentos, e nos movimentos de câmara — nos seus filmes. A sua primeira longa-metragen de ficção — Gado Bravo (1934) — irá logo deixar bem à vista do público essas marcas. Note-se que a propósito desta fita rodou um documentário («making-of», no vocabulário técnico de hoje; coisa inédita à época).
António Ferro — que sabia, como ninguém, detectar talentos — vai desafiá-lo a rodar uma película sobre a Revolução Nacional de 28 de Maio de 1926, a fim de Comemorar os seus 10 anos. O argumento é escrito por António Lopes Ribeiro e pelo próprio António Ferro (com os pseudónimos de Baltazar Fernandes e Jorge Afonso, respectivamente) e terá a produção assegurada pelo Secretariado de Propaganda Nacional. Sobre esta fita — A Revolução de Maio (1937) —, não resisto a relembrar aqui o sucedido, há uns anos, quando algum «especialista» de programação da RTP decidiu exibir este filme, no 1.º de Maio, julgando tratar-se de uma película panegírica da data...! Ia caindo o Carmo e a Trindade!...
A partir de 1938, na sua nova responsabilidade de director artístico da Missão Cinegráfica às Colónias de África, visita e trabalha — supervisionando e dirigindo produções — nas Províncias Ultramarinas. Resultante desta aproximação a África, surge Feitiço do Império (1940); ainda hoje um filme de grande escala e enredo cativante, e a necessitar de urgente reposição para que as novas gerações digam de sua justiça.
Em 1941, cria as Produções Lopes Ribeiro, com o objectivo de produzir longas-metragens de ficção, ou filmes de fundo, entre os quais temos a nata do Cinematografia Portuguesa do Século XX: O Pátio das Cantigas (1942), de Francisco Ribeiro (seu irmão «Ribeirinho»); Aniki-Bóbó (1942), de Manoel de Oliveira; Camões (1946), de Leitão de Barros; para além de todas as Comédias Portuguesas que iluminaram a Época de Ouro do Cinema Nacional.
Para podermos avaliar convenientemente a genialidade heterodoxa deste Autor, esplanada em géneros cinematográficos tão distintos, basta referir O Pai Tirano (1941), que representa um certo paradigma da Comédia Portuguesa, e Amor de Perdição (1943), exemplo perfeito de como se pode obter êxito comercial com adaptações de qualidade de clássicos da Literatura Portuguesa.
Toda esta Obra Cinematográfica foi construída a par de uma outra carreira como Homem de Teatro. Fundou a Companhia «Os Comediantes de Lisboa», que actuou sucessivamente no Teatro da Trindade, no Teatro Avenida, e no Teatro Apolo; e, em 1952, fundou o «Teatro do Povo», que levou à cena desde Gil Vicente até peças da sua própria autoria.
Numa outra frente, traduziu Tchekov, Maeterlinck, Pagnol, Maugham e Giradoux, entre outros.
Como escritor, publicou O Livro de Aventuras (1939) e O Livro das Histórias (1940) — colectâneas de sonetos e poemas; editou ainda as várias compilações das suas crónicas, destacando-se: Esta Pressa de Agora (1962), Anti-Coisas & Tele-Coisas (1963) e Belas-Artes & Malas-Artes (1964).
Na televisão, ficou na memória de várias gerações de famílias portuguesas com o seu programa semanal Museu do Cinema, fazendo dupla com o famoso pianista «mudo» António Melo, entre 1957 (ano de fundação da RTP) e 1974 (ano do não desejado fim da sua brilhante carreira).
Homens destes já não existem hoje, em 2013. Saibamos merecê-los; e, para isso, comecemos por conhecê-los.

Nota: Artigo escrito para a revista Alameda Digital. Republicado em novas versões nos blogues Eternas Saudades do Futuro e Jovens do Restelo e no jornal O Diabo.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

CADERNOS INTERATLÂNTICOS (4)

Juan Carlos L. é argentino, professor de Direito e antigo jornalista. Católico a sério, a sua “terceira idade” está dedicada ao estudo, à caridade, à erradicação do flagelo da droga na juventude, à defesa intransigente da vida e da família. JC – chamemos-lhe assim – é meu bom amigo.  Mais exactamente: eu é que tenho o privilégio de ser seu amigo.
Filho de um diplomata, viveu de miúdo em Lisboa, na Borges Carneiro. Qual a minha surpresa quando o conheci, mal terminava a minha primeira e modesta intervenção pública em Buenos Aires, uma charla sobre Salazar e o Estado Novo. Julguei que estava a falar com um alfacinha de gema!
Tão apegado ficou à Portugal e às coisas portuguesas que aqui veio passar a sua luna de miel, e porque tinha de mostrar à jovem esposa o país que tanto admirava – sua História e sua gente, suas Catedrais e seus castelos, suas aldeias e seus campos, seu modo tão particular de estar no mundo e, claro está, seu regime político.  É que nessa altura – estamos em 1966 – a Argentina entrava numa fase de reestruturação nacional, com o governo do General Onganía a apostar na restauração da Autoridade e na adopção de princípios corporativos. Recorde-se que é esse mesmo militar que, ajoelhado aos pés da imagem da Santíssima Virgem de Luján, Padroeira da Nação, consagra o país dos argentinos ao Coração Imaculado da Santíssima Virgem Maria.  
A ligação de JC com Portugal é realmente impressionante. Seu pai, depois de servir como Secretário de Embaixada no imediato pós-guerra, retorna, volvidos três lustros, como Embaixador. E para cá é enviado uma terceira vez, em Julho de 1970, em missão extraordinária, para representar a Argentina nas exéquias de Salazar. Nesse mesmo ano JC desloca-se a Angola, como jornalista da Radio Rivadavia de Buenos Aires.
Durante vários meses esquadrinha essa província ultramarina de lés a lés: de Luanda a Henrique de Carvalho, de Carmona a Sá da Bandeira, de Malanje a Serpa Pinto. Imaginem o que é estar em Buenos Aires e escutar um argentino discorrer, com o à-vontade de um habitué, sobre Moçâmedes, Vila Amélia ou o Moxico!  Após calcorrear cidade e mato, acompanhar a tropa em missões várias, conversar com quanto preto, branco ou mulato que encontrou, JC chega ao fim do périplo convencido de cinco coisas: da especificidade do “caso” português, não comparável com qualquer outro; do progresso efectivo, inquestionável, daquele pedaço de Portugal; da debilidade material e moral dos movimentos guerrilheiros; da justeza da sociedade luso-tropical em oposição à tragédia que viria a reboque do marxismo; da vitória militar portuguesa.
Entusiasmado com o que viu e viveu, JC chega a Buenos Aires e dão-lhe carta branca para preparar o conteúdo do documentário radiofónico que tem por objectivo dar a conhecer o que se passa em Angola. Mas com uma única condição: que poderia dizer o que quisesse menos dizer bem dos portugueses. Retrucou o meu amigo que não estava ali para dizer bem ou mal, somente para relatar o que viu e sentiu. Escusado será acrescentar que a emissão ficou em águas de bacalhau.
Entretanto a situação política argentina deteriorava-se dia a dia. A subversão marxista tomava proporções inauditas, o atrevimento do terrorismo e da guerrilha levava a sociedade às portas da desintegração. Nacionalista católico, JC não pestanejou na hora de assumir as suas responsabilidades, e por milagre  não perdeu a vida, junto com a mulher e o filho, num atentado levado a cabo por um comando montonero. Metido até ao pescoço em uma guerra em casa – a sua guerra –, como esperar que também guerreasse a nossa?
Foi com o coração apertado que acompanhou a tragédia do 25/4/74 e a nossa desgraça. Com amargura, separado por um oceano de água e recordações, assistiu ao criminoso desmantelamento de Portugal. Radioamador, ainda conseguiu ajudar na fuga de algum amigo que fizera em Angola ou na Metrópole, auxiliando a sua instalação na Argentina, para recomeçar a vida do zero. 
As suas notas, ou melhor, o seu journal de guerre, estão à espera de JC para sacudir-lhes o pó, dar-lhes forma e mandá-las ao prelo. Eu, insistente que sou,  propus-me como New Year´s resolution, convencê-lo a dar o seu testemunho.  Espero que as minhas démarches não tardem em dar frutos.  Quem sabe se, para o ano, não teremos cá esse português adoptivo a dizer da sua justiça e a restaurar a verdade histórica que nos toca fundo na alma?
Até para a semana.
Marcos Pinho de Escobar

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

CARTEIRA DE SENHORA


DIA 55

Num dia de capicua lindíssima (e não, não é por isso que pensam, ainda não cheguei lá), foi completamente previsível o papelinho da carteira. Parece querer voltar aos eixos e deixar de andar contracorrente. Veremos por quanto tempo e se não lhe é contranatura o eixo.

O tema da semana foi sem dúvida a decisão imprevista do Papa Bento XVI. Depois de ler artigos e comentários de todo o género, quem sou eu – nada e criada na fé católica, mas agora meio perdida embora ainda na esperança de reencontrar o caminho – para tecer mais um? Ia soar a impertinência e não conseguiria dar-lhe a dignidade merecida.

Diria simplesmente que não temos de questionar, especular e inventar, mas tão só aceitar uma decisão corajosa e humilde de quem agora apenas pede que rezem. Por ele, pela Igreja, pelo seu sucessor. É o que faremos, na certeza de que o Espírito Santo vai estar onde é tão preciso. E esta renúncia, vacatura e sucessão ocorrerem precisamente quando começa a Quaresma, o tempo de renúncia e preparação para a Páscoa, leva necessariamente à tentação da analogia, pela similitude dos passos, com o sofrimento, morte e ressurreição de Cristo.

Que continuemos a ter Papas coerentes e corajosos é essencial nesta época em que assanhadamente se quer apagar qualquer vestígio de tudo o que soe a religião, de tudo o que colida com o egoísmo do Homem, de tudo o que lhe tire o papel principal. E sobretudo nesta época em que a perseguição aos cristãos, nomeadamente aos católicos, é real.

Por mais que alguns senhores jornalistas entrem nessa sanha, sabem bem que o mundo precisa da voz do Papa. Pode parecer a alguns voz solitária pregando neste deserto de espiritualidade, mas não. É ouvida. Por muitos.

O folclore a que se tem assistido vem mais de fora. Os católicos penso que aguardam serenamente a escolha dos Cardeais, seja qual for, e uma Páscoa já com o novo sucessor de Pedro.

Aguardemos então. Vamos ter um novo sorriso naquela célebre janela.

Leonor Martins de Carvalho

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

CINEMA E REGICÍDIO

Manuel Maria da Costa Veiga inicia a sua actividade cinematográfica como exibidor de filmes estrangeiros em Lisboa. Embora residente em Algés, era uma típica figura da Capital na viragem do século XIX para o XX — dandy alto e espadaúdo, de farta mas cuidada barba à moda. Além do mais, era um curioso e especialista em mecânica e electricidade, o que lhe conferia uma aura de mágico, nesses tempos da iluminação a gaz.

Costa Veiga ajudou Edwin Rousby na primeira exibição em Portugal de imagens em movimento, que decorreu no Real Coliseu da Rua da Palma (hoje desaparecido, para dar lugar a caixotes pós-modernos); sessão essa que teve na assistência o Infante D. Afonso, irmão do Rei D. Carlos I, o que revela o empenho da Casa Real nas novidades científicas e artísticas que estavam a surgir, na Europa, na sequência da primeira apresentação pública — em Paris, a 28 de Dezembro de 1895 — de imagens captadas, reveladas e projectadas pelos irmãos Lumière, com a sua maravilhosa máquina Cinématographe.

A referida estreia lisboeta aconteceu em Junho de 1896 e nela foram projectadas fitas rodadas à volta do Mundo por operadores do pioneiro londrino Robert-William Paul. Foi um sucesso público, esta iniciativa do misterioso exibidor itinerante (húngaro ou americano, ninguém sabe) Edwin Rousby, «o electricista de Budapeste». Este, em Setembro, propicia nova sessão pública em Lisboa, agora com películas já filmadas no nosso País, pelo operador Harry Short, que Paul mandara para o sul da Europa à caça de imagens. A Cinemateca Portuguesa possui dois destes filmes: A Boca do Inferno e A Praia de Algés na Ocasião dos Banhos. Em Janeiro de 1897, Rousby parte definitivamente de Portugal, mas deixa em Lisboa a semente da cinefilia.

Depois deste flashback, para enquadramento histórico da aparição do Cinema («Animatógrafo», nas palavras de então) em Lisboa, vamos ao nosso pioneiro: Costa Veiga, após várias tentativas falhadas nesse sentido, conseguiu estabelecer-se como exibidor, inaugurando o Éden Concerto, aos Restauradores, e a Esplanada D. Luiz Filipe, em Cascais. Não tardou, no entanto, a dar o salto para a produção de filmes. Assim, aproveitando a estada sazonal do Rei D. Carlos em Cascais, no Verão de 1899, filma a Pessoa Real na praia, capta mais algumas vistas da então famosa estância balnear, e, finalmente, apresenta a sua primeira película: Aspectos da Praia de Cascais.

Foi o início de uma carreira de grande actividade como documentarista (palavra e conceito inexistentes à época, mas é disso que se trata), que atravessará toda a primeira década do século XX, registando os principais acontecimentos sociais e políticos, com a sua câmara inglesa Urban.

As vindas a Portugal de Chefes de Estado, e outras altas figuras, não lhe escaparam; e, temos, assim, a Série — interessante e fundamental para a compreensão da História da Europa — «Visitas a Lisboa»: Eduardo VII (1903), Afonso XIII (1903), Duques de Connaught (1903) Imperador da Alemanha Guilherme II (1905), Presidente de França Émile Loubet (1905), Rei de Saxe (1908).

Por este motivo, ficou conhecido por «Cineasta dos Reis», em oposição jocosa ao seu contemporâneo Aurélio da Paz dos Reis, «o Reis Cineasta», do Porto — primeiro português a dar à manivela uma câmara de filmar; e, revolucionário republicano, por sinal… Deste, falaremos noutro dia.

Entretanto, Costa Veiga fundou uma empresa produtora de Cinema — Portugal Filme —, continuando ainda a sua actividade profissional nos ramos da exibição e distribuição de fitas. Descobriu também, para o Cinema Português, Artur Costa de Macedo, que viria a ser um dos nossos melhores directores de fotografia, decisivo na Época de Ouro do Cinema Português (décadas de 1930 e 1940), e que trabalhava antes na garagem Auto-Palace, ao Rato.

Num tempo muito anterior ao advento da Televisão, era através do Cinema que os Estados comunicavam com os seus cidadãos e passavam para o exterior as imagens do País. Neste contexto, os filmes de Costa Veiga fizeram parte de uma grande e última ofensiva diplomática da Monarquia Portuguesa. A já referida Série «Visitas a Lisboa» foi distribuída por toda a Europa, com o apoio do Rei D. Carlos, mostrando Lisboa, como capital cosmopolita, acolhendo as principais figuras políticas do Mundo.

Note-se que os filmes, embora numa fase embrionária da Sétima Arte — em formato de curtas-metragens, a preto-e-branco, mudos —, eram um negócio rentável; e, Costa Veiga pôde enriquecer com a produção, distribuição e exibição de fitas, despertando, desta maneira, o apetite de muitos outros para esta indústria, os quais não tardaram a aparecer, em força, em Lisboa.

Sendo Costa Veiga «O Cineasta dos Reis», de facto, pode também dizer-se que a sua carreira sofre um grande abalo com o horrível Regicídio de 1 de Fevereiro de 1908 no Terreiro do Paço. Temos assim — simbolicamente — como uma das últimas obras do realizador: Os Funerais de S. M. El-Rei D. Carlos I e do Príncipe Real D. Luiz Filipe (1908).

Agora, em 2013, depois de passados 105 anos sobre o cobarde crime do Terreiro do Paço, não será a hora de se desenterrarem e exibirem os filmes do pioneiro lisboeta — do Cinema Nacional — Manuel Maria da Costa Veiga?

Nota: Artigo escrito para a revista Alameda Digital. Republicado em novas versões nos blogues Eternas Saudades do Futuro e Jovens do Restelo e no jornal O Diabo.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

DO CINEMA PORTUGUÊS DURANTE A MONARQUIA

O jornal O Diabo, semanário fundado por Vera Lagoa e actualmente dirigido por Duarte Branquinho, traz na sua edição desta terça-feira mais um artigo cultural, hoje sobre o cinema português durante a monarquia, da minha autoria.

RELIGIÃO E ARTE

Antes de mais quero agradecer este muito honroso convite para pronunciar, neste encontro, umas simples e breves palavras. Principiarei por dizer-vos ter pensado que as éticas, se não também mesmo as artes, seriam derivadas das religiões que procuram dar uma explicação da existência do ser humano face à sua inserção concreta no cosmos. Universo e homem, criações dum ser transcendente, colocam-nos problemas inquietantes para cuja solução o Verbo, que se fez carne em Cristo, nos trouxe insuperáveis graças divinas.
As Artes desde os primórdios sempre estiveram estreitamente ligadas às religiões e o cristianismo foi pródigo em expressões artísticas depois da passagem de Cristo pela terra e até aos dias de hoje.
Sou um homem do cinema, do cinema que é a sétima das artes, logo a mais recente de todas as expressões artísticas, pois não tem mais que um século, enquanto outras terão milénios. Em dois dos meus filmes, figurava um Anjo. No ACTO DA PRIMAVERA, baseado em um auto popular, da família dos chamados Mistérios ainda no século XVI. Este figurava a Paixão de Cristo, projecto que realizei em 1962, e onde a figura de um Anjo fazia parte do próprio contexto religioso desse Auto. No outro filme, CRISTOVÃO COLOMBO - O ENIGMA , realizado já em 2007, o Anjo não constava do contexto da história do livro em que me baseei. No entanto, pareceu-me bem introduzir o Anjo da Guarda, aqui o da nação portuguesa, como prévia configuração do Destino, tantas vezes adverso e tantas outras favorável às acções humanas, como aconteceu nessa feliz viagem do navegador que, pela primeira vez, encontrou as ilhas americanas de Antilhas. Isto levou-me a repensar as figuras dos Anjos fora e dentro das Igrejas, parecendo-me conotadas com prefigurações dos espíritos. Ora se os espíritos são um só, então temos nele a natureza de Deus.
Considerando, porém, a religião e a arte, ambas se me afiguram, ainda que de um modo distinto é certo, intimamente voltadas para o homem e o universo, para a condição humana e a natureza Divina. E nisto não residirá a memória e a saudade do Paraíso perdido, de que nos fala a Bíblia, tesouro inesgotável da nossa cultura europeia? Acossados pelas especulações da razão, sempre se levantam terríveis dúvidas e descrenças, a que se procura opor a fé do Evangelho que remove montanhas. E os seres humanos caminham na esperança, apesar de todos os negativismos. Como diz o padre António Vieira: «Terrível palavra é o NON, por qualquer lado que o tomeis é sempre NON...», terminando por lembrar que o NON tira a ESPERANÇA que é a última coisa que a natureza deixou ao homem.
Se as artes nada mais aspiram a ser que um reflexo das coisas e acções vivas dos procedimentos e sentimentos humanos do universo real ou em fantasias imaginadas, pode aceitar-se o que um realizador mexicano, Artur Ripstein, classificou dum modo magnífico e surpreendente o cinema como sendo o espelho da vida. E é-o de facto.
Não querendo alongar-me mais, aproveito a circunstância para, como pertencente à família cristã, de cujos valores comungo, e que são as raízes da nação portuguesa e a de toda a Europa, quer queiramos ou não, saudar com profunda veneração sua Santidade, o Papa Bento XVI em visita ao nosso País e rogar filialmente que nos deixe a Sua bênção.
Manoel de Oliveira
[Discurso proferido durante o encontro de Sua Santidade o Papa Bento XVI com pessoas da Cultura Portuguesa entre as quais tive a honra e o prazer de estar. Pude assim ouvir de viva voz este magnífico texto lido pelo próprio Manoel de Oliveira no Centro Cultural de Belém aos 12 de Maio de 2010.]

TAMBÉM ME SINTO ASSIM

 Bento XVI: a tristeza imensa de uma alegria ilimitada, por Nuno Serras Pereira.

 
[Clicar no título para ler o texto no blogue Logos.]

DECLARAÇÃO DE RESIGNAÇÃO

Vaticano, 10 de Fevereiro de 2013
Caríssimos Irmãos:
Convoquei-vos para este Consistório não só por causa das três canonizações, mas também para vos comunicar uma decisão de grande importância para a vida da Igreja. Depois de ter examinado repetidamente a minha consciência diante de Deus, cheguei à certeza de que as minhas forças, devido à idade avançada, já não são idóneas para exercer adequadamente o ministério petrino. Estou bem consciente de que este ministério, pela sua essência espiritual, deve ser cumprido não só com as obras e com as palavras, mas também e igualmente sofrendo e rezando. Todavia, no mundo de hoje, sujeito a rápidas mudanças e agitado por questões de grande relevância para a vida da fé, para governar a barca de São Pedro e anunciar o Evangelho, é necessário também o vigor quer do corpo quer do espírito; vigor este que, nos últimos meses, foi diminuindo de tal modo em mim que tenho de reconhecer a minha incapacidade para administrar bem o ministério que me foi confiado. Por isso, bem consciente da gravidade deste acto, com plena liberdade, declaro que renuncio ao ministério de Bispo de Roma, Sucessor de São Pedro, que me foi confiado pela mão dos Cardeais em 19 de Abril de 2005, pelo que, a partir de 28 de Fevereiro de 2013, às 20,00 horas, a sede de Roma, a sede de São Pedro, ficará vacante e deverá ser convocado, por aqueles a quem tal compete, o Conclave para a eleição do novo Sumo Pontífice.
Caríssimos Irmãos, verdadeiramente de coração vos agradeço por todo o amor e a fadiga com que carregastes comigo o peso do meu ministério, e peço perdão por todos os meus defeitos. Agora confiemos a Santa Igreja à solicitude do seu Pastor Supremo, Nosso Senhor Jesus Cristo, e peçamos a Maria, sua Mãe Santíssima, que assista, com a sua bondade materna, os Padres Cardeais na eleição do novo Sumo Pontífice. Pelo que me diz respeito, nomeadamente no futuro, quero servir de todo o coração, com uma vida consagrada à oração, a Santa Igreja de Deus.
Papa Bento XVI

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

CADERNOS INTERATLÂNTICOS (3)


Os estado-unidenses da América recordaram recentemente os quarenta anos da legalização do aborto – a famigerada Roe v. Wade, com o saldo macabro de 55 milhões de vidas ceifadas, todas elas inocentes e indefesas.  Nada mal para esse farol da civilização cujo modelo deve ser imposto – à bomba se necessário – à direita e à esquerda por esse globo fora. Aqueles que me conhecem sabem que adoro os animais –  irracionais, claro está, especialmente os cavalos e os cães. Mas o respeito que tenho por estes não me impede de caracterizar como degenerada uma sociedade na qual maltratar um bicho é crime que se expia na cadeia, enquanto assassinar um nascituro é exercício de liberdade e direito constitucional.
 
Saltamos de volta o Atlântico e verificamos que na antiga terra dos anglos o emparelhamento de invertidos é oficializado com devida pompa e circunstância. E tudo pela mão do tory Cameron, um tipo “conservador”. Cabe aqui a observação:  para inglês ver, of course.  Com conservadores deste quilate, quem é que necessita de “progressistas”? No, Prime Minister, ao contrário do que Vossa Excelência afirmou, o que acaba de ser legalizado não vai fazer a sociedade “mais forte”. Em franca dissolução graças à demolição da autoridade, da moral e da família – e nem falemos do multi-culturalismo suicida! – a vida social vai receber o golpe de misericórdia com esse atentado à Ordem Natural, esta sim, a verdadeira base da vida individual e colectiva.
 
E ainda nos querem vender a ideia de que tudo isso é progresso de causar inveja. Só que o progresso dos progressitas, tal como escreveu o grande Nicolás Gómez Dávila, é a preparação da catástrofe.
 
Inquilino incómodo e incomodado do mundo moderno, é na História que encontro o meu refúgio. É da Mestra da Vida que retiro o bálsamo para os ferimentos causados pela dissolução nacional programada a que estamos submetidos. É ali, a beber nas fontes de um Portugal grande, soberano e português, que vou buscar força e inspiração. Deixo-vos aqui um documento que constitui um caso único nos anais da Colonização. Como se sabe, a chamada Banda Oriental do rio Uruguai, a Província Cisplatina – ou, simplesmente, o Uruguai – foi terra portuguesa durante algum tempo. Na sequência da secessão brasileira e das pressões  inglesas as forças portuguesas leais à Coroa são levadas a abandonar o território. Pois ao deixar Montevideu o Comandante português, D. Álvaro da Costa de Sousa de Macedo, recebe a seguinte comunicação do Ayuntamiento de Montevideo (mantém-se a grafia original):
 
Ill.mo y Exmo Sor – llegado el momento de embarcarse de regreso para Europa la Division de Voluntarios del-Rey, no sabe el Cabildo de Montevideo decidir si podia ella gloriarse mas en el pezar que demuestra el Pueblo por su ausencia, que en los continuados triunfos que le han dado su valor y disciplina à la faz de toda Europa en la guerra Peninsular, y en la que se vió forzada à emprender para arrancar à esta Provincia del Poder de la anarquia que la deboraba en el año de 1816.  V. E. Se empeña en manifestar su gratitud y de la Division hácia estos habitantes en su muy honorable comunicacion de ayer, y ciertamente que solo un êxceso de cortesania parece que podria haber hecho olvidar à V.E. de las virtudes de estas tropas, para moverlo a ponderar una hospitalidad y confianza que jamas podria ser justamente digna de estos guerreros. Mas no el cabildo de Montevideo, no el vecindario, no todo este Estado, sino la fama, y la mas tierna memoria de estas tropas serán las que hagan su mayor elogio, para que à los pies del trono de S. M. El Rey Sor Juan 6.º, no pueda llevarse mejor recomendacion que haber tenido la honra de pertenecer a la Division de Voluntarios Reales del-Rey.  En este concepto, parta V.E. conduciendo esta Division à recoger los laureles que ha ganado: parta V.E. y ellos acompañados de nuestra mas grata memoria: y sea la mejor demostración de la felicidad que les desea este Pueblo las lagrimas de ternura que generalmente vierte al verse separado de tan honrados Portugueses, cuyas virtudes lo habian obligado à darles los dulces titulos de compañeros y hermanos.  Dios guarde à V.E. m. a.  Sala Capitular de Montevideo febrero 27 de 1824 – JC – J de A.S. – S. S. De la U. – J. G. – R. U. – E. G- Illmo y Exmo Sor Brigadier D. Alvaro da Costa de Sousa de Macedo Comandante en Gefe de la Division de V. R. Del Rey.
 
Qual outro povo, além do português, pode ostentar tal pergaminho? 
 
Até para a semana.
 
Marcos Pinho de Escobar

domingo, 10 de fevereiro de 2013

DOIS TOTALITARISMOS

Historicamente, a revolução americana de 1776 é a raiz das revoluções dos séculos seguintes. Destas, destacam-se — como política, social e economicamente determinantes — a francesa, de 1789, e a russa, de 1917. A primeira, feita pela burguesia, instala a democracia liberal capitalista. A segunda, levada a cabo pelo proletariado, impõe  o comunismo. Estes dois sistemas passam a ser universalmente hegemónicos, após terem vencido, enquanto aliados, a II Guerra Mundial. De seguida, depois de longos anos de «guerra fria», o totalitarismo comunista foi derrotado definitivamente pela auto-implosão do seu  regime soviético. Hoje, o mundo vive apaticamente e apatridamente sob o domínio global total do capitalismo demo-liberal. Até quando?   

AOS AUTORES DA CORRENTE NACIONAL DA BLOGOSFERA PORTUGUESA

 Vale a pena resistir, permanecer, insistir e vencer!

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

CARTEIRA DE SENHORA


DIA 54

O já célebre papelinho com o tema da semana, que a carteira me faz o favor de autorizar que encontre algures no seu bojudo seio, tem sempre uma morte em beleza muito contemporânea, numa instituição chamada ecoponto, que lhe permite ser uma espécie de Fénix. Renascerá papel. Mais grosso, mais áspero, mais acastanhado, mas papel.

Esta sociedade consumista quer aliviar consciências e em vez de tentar alterar hábitos, promete recolher os abusos e transformá-los, criando assim uma indústria que se alimenta do desperdício.

Não acho mal, diga-se, mas melhor seria que primeiro tentasse reduzir o desperdício à partida, nomeadamente com a antiga mas eficiente solução das embalagens retornáveis ou então com utilização de embalagens menos poluentes. Os fabricantes dessas embalagens poderiam sempre, eles sim, reciclar-se…

O extraordinário foi terem conseguido convencer as pessoas a fazer, voluntariamente, parte do trabalho necessário à indústria: a separação. Isto é que é marketing!

Civilizar as pessoas ainda é tarefa difícil. Podem ser educadíssimas, mas no que respeita a lixo, o pensamento é único: tirá-lo de casa o mais depressa possível. Depois de o despejarem seja em que sítio for, da maneira mais incivilizada possível, nem pensam mais no assunto. Desde que não esteja em casa… E não se pense precipitadamente que são os jovens os culpados do desleixo. É mesmo transversal, a imundície.

Assim, os ecopontos tricolores nunca estão sós. Volta e meia acompanham-nos os chamados monstros: fogões ou frigoríficos, armários, cadeirões, ferros retorcidos de que não conseguimos adivinhar o formato original. Na outra meia volta estão sacos de lixo normal, que cães com e sem dono focinham e esfarrapam espalhando o conteúdo em redor. Muitos ainda têm por companhia as embalagens com comida e água com que boas almas alimentam os animais vadios.

Pelos vistos ainda servia de pouco a separação voluntária e assim, nalguns bairros, deixaram na rua um só dos elementos do trio, passando a fazer-se recolha selectiva porta-a-porta, coisa muito organizadinha, em dias alternados. O ecoponto que restou, o vidrão, continua a ter companhia. Mas se não fosse ele era a árvore mais próxima.

Agora cada prédio tem o seu mini-ecoponto e os problemas de fora saltaram para dentro, com a agravante de não ser ao ar livre. Há quem não se preocupe minimamente e ponha lixo normal nos caixotes de tampa amarela ou azul. Em casa é que não fica! O cheiro às vezes é insuportável. Nem vale a pena perguntar. Ninguém vai confessar, claro.

Teria sido simpático a Câmara, em equipa com as Juntas de Freguesia, ter feito uma campanha nos bairros, ensinando, especialmente os mais velhos, a separar o lixo. Os condóminos mais experientes nestas andanças de recicláveis também podiam oferecer-se para explicações ao domicílio nos primeiros tempos.

Da separação do lixo e da reciclagem resultam novos produtos. Duvido que isto seja aplicável aos políticos que nos desgovernam há anos demais. Estão mais próximos da categoria lixo indiferenciado, próprio apenas para ser enterrado. Longe da vista e do olfacto. Recolha às terças, quintas e sábados.

Leonor Martins de Carvalho

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

O OUTRO LADO DOS ANOS 60 EM PORTUGAL

Em resposta ao inquérito do semanário O Debate sobre a chamada Geração 60, escrevo o seguinte depoimento:
« (...) Finalmente, uma terceira tendência caracteriza-se por um nacionalismo filosófico que reivindica a existência e a originalidade de um pensamento português e por um nacionalismo político que se empenha na defesa da solução monárquica ou dos regimes autoritários. Tradicionalista do ponto de vista político, vanguardista e cosmopolita do ponto de vista estético, pela aceitação e difusão dos movimentos "futuristas" estrangeiros. Os autores em que se encontra essa juventude são, entre outros, Álvaro Ribeiro, Pessoa e Almada, António Sardinha e Alfredo Pimenta, Maurras e Brasillach, Montherland e Drieu, Pound e Papini. (...) »

In Diário Quase Completo, de João Bigotte Chorão, edição Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2001.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

EM PORTUGAL JÁ NÃO HÁ HOMENS?

Reencontrei recentemente uma velha amiga que há muito abandonou a pátria. Casada com um inglês, fascinada pela cultura germânica, versão anglo-saxónica, disparou-me com a seguinte frase: «Sabes..., o problema de Portugal é que já não tem homens.» Contive o meu ímpeto inicial para lhe responder de forma patriótica e marialva, fiz uma pausa, e perguntei-lhe: «O que é que isso quer dizer?» Ela apresentou-me então, de forma prática e exemplificada — à boa maneira britânica, lá está —, a seguinte tese: «O meu bisavô, que era à época o representante da nossa família, teve três rapazes e quatro raparigas; desses rapazes, só o meu avô, que era filho-segundo, teve filhos varões: o meu pai e o meu tio, além das três tias; o meu tio, que por acaso até era mais novo, morreu solteiro e sem filhos; o meu pai teve-me a mim e às manas, que tu também conheces, e nenhum rapaz. A nossa família, ao fim de 500 anos, extinguiu-se com a morte do meu pai.» Retorqui de pronto: «As famílias não se extinguem assim, estás aqui tu e tens dois filhos lindos». Riu-se e disse-me com tom superior: «Esse é o vosso problema em Portugal. Nós em Inglaterra consideramos as famílias extintas quando ficam sem filhos varões porque é por eles que os apelidos devem passar de geração em geração.» Embora não me tenha sentido directamente atingido por esta teoria, pois, graças a Deus, a varonia está assegurada na minha família, fiquei a pensar nisto... Será esta a fonte do mal nacional?

LITERATURA NACIONAL

Nenhuma literatura é viva se não for eminentemente nacional; nenhuma coisa pode ser nacional se não é popular.

ALMEIDA GARRETT
(1799 — 1854)

CERTOS SERÕES À CONVERSA COM PESSOAS CERTAS

Aprendi mais em certos serões à conversa com pessoas certas do que em muitos anos de estudos e leituras.

CONTRA-REVOLUÇÃO E FASCISMO

Nesta altura, estamos em condições de indicar, num simples resumo, o que separa e o que aproxima a Contra-Revolução do Fascismo.
As afinidades positivas e negativas são bem patentes. Acentuação do valor superior do Estado face ao indivíduo, afirmação do Absoluto, corporativismo, culto do Poder pessoal, anti-relativismo, anti-liberalismo, anti-democratismo, anti-marxismo.
No entanto a Contra-Revolução e o Fascismo contrapõem-se nos seguintes tópicos.
A Contra-Revolução é conservadora, o Fascismo é revolucionário.
A Contra-Revolução aceita a esfera do privado, em geral, e a propriedade privada em especial, o Fascismo não admite em tese uma esfera puramente privada e tem tendências socializantes.
Por outro lado, a Contra-Revolução firma-se num Absoluto transcendente, o Fascismo concebe o Absoluto como imanente-transcendente.
A Contra-Revolução e o Fascismo possuem um entendimento diferente do Corporativismo e da supremacia do Estado sobre o indivíduo ou pessoa humana. A Contra-Revolução limita-se a subordinar o indivíduo ao Estado e submete-o, bem como ao Estado, à Igreja. O Fascismo visa a identificação do indivíduo ao Estado acima do qual nada vê.
Numa palavra: Fascismo e Contra-Revolução são universalistas, o Fascismo de um universalismo totalitário, a Contra-Revolução de um universalismo católico-tradicionalista.

In Para a Compreensão do Pensamento Contra-Revolucionário: Alfredo Pimenta, António Sardinha, Charles Maurras, Salazar, de António José de Brito, edição Hugin Editores, Lisboa, 1996.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

CADERNOS INTERATLÂNTICOS (2)


Na sua última “Carteira de Senhora” a Leonor Martins de Carvalho recordou, com grande justiça, o vil atentado que há cento e cinco anos vitimava o Rei D. Carlos e o Príncipe D. Luís Filipe.  Sem dúvida, um regicídio é um parricídio, com todas as implicações que daí advêm, reconhecidas ou não. Recordo que a propósito do aborto, o Santo Padre Pio de Pietrelcina dizia que não se tratava apenas de um homicídio, mas igualmente de um suicídio.  Pois o assassínio de um Rei, seja ele a figura decorativa tão ao gosto do demo-liberalismo, ou monarca efectivo, é sempre – no mínimo – uma terrível mutilação ao corpo nacional. Daí que um regime político gerado no ódio e no crime jamais pode ser boa coisa. É que já nasce com a chancela do Iníquo, sendo instrumento fundamental no seu plano de abolição do homem.  Nas versões light ou hard, ajustado à idiossincrasia de cada povo, consoante tempo e lugar, a guerra movida contra o Altar e o Trono tem esse claro objectivo.
 
E por falar em Reis… Esta semana a Rainha Beatriz da Holanda anunciou que irá abdicar a favor do filho, o Príncipe Guilherme, casado, desde 2002, com a argentina Máxima Zorreguieta. Filha de um antigo Secretário e depois Ministro da Agricultura do regime militar, a futura Rainha aceitou, alegremente, que o papá fosse proibido de pisar solo holandês para levar a filhota ao altar.  É que a Batávia, terra de piratas e especuladores e hereges, paraíso da droga e da contranatura à medida, não poderia admitir que um funcionário da “ditadura militar” argentina – que combateu a guerrilha marxista – ali aparecesse a conspurcar ambiente tão honrado. Especialmente em vista das ligações entre a Casa de Orange, a Maçonaria e o Grupo de Bilderberg. Mas passo por cima desses “pormenores” para referir apenas dois:  o facto de Sua Alteza renegar a Verdadeira Fé para abraçar a seita protestante e a aceitação pacífica do enxovalho ao progenitor.  Bastam-me essas duas razões para alterar o nome da muchacha de Máxima para Mínima.
 
Há anos que não passava pelo Largo do Carmo numa noite de Sábado.  “Passar” é dizer muito: na verdade quase não “passava”, tal a quantidade de carros.  É caso para afirmar, sem medo de errar, que os portugueses não têm pernas, têm mas é carros. Será que somos o país com mais automóveis per capita? Por quilómetro quadrado?  Talvez o mais certo seja por metro quadrado…  Li outro dia algures que as sociedades avançadas não eram aquelas onde cada pobre tem um carro, mas onde o rico utiliza o transporte público.  Falta muito pouco para o português passar a maior parte da vida sentado num automóvel… imóvel!  Sorte tiveram os abrileiros do “25/74”. Hoje, a coluna fandanga não chegaria facilmente ao antigo Convento construído por São Nuno.  E Portugal, talvez, ainda teria uma chance!
 
Até para a semana.
 
Marcos Pinho de Escobar

sábado, 2 de fevereiro de 2013

CINEMA E REGICÍDIO


Manuel Maria da Costa Veiga inicia a sua actividade cinematográfica como exibidor de filmes estrangeiros em Lisboa. Embora residente em Algés, era uma típica figura da Capital na viragem do século XIX para o XX — dandy alto e espadaúdo, de farta mas cuidada barba à moda. Além do mais, era um curioso e especialista em mecânica e electricidade, o que lhe conferia uma aura de mágico, nesses tempos da iluminação a gaz.

Costa Veiga ajudou Edwin Rousby na primeira exibição em Portugal de imagens em movimento, que decorreu no Real Coliseu da Rua da Palma (hoje desaparecido, para dar lugar a caixotes pós-modernos); sessão essa que teve na assistência o Infante D. Afonso, irmão do Rei D. Carlos I, o que revela o empenho da Casa Real nas novidades científicas e artísticas que estavam a surgir, na Europa, na sequência da primeira apresentação pública — em Paris, a 28 de Dezembro de 1895 — de imagens captadas, reveladas e projectadas pelos irmãos Lumière, com a sua maravilhosa máquina Cinématographe.

A referida estreia lisboeta aconteceu em Junho de 1896 e nela foram projectadas fitas rodadas à volta do Mundo por operadores do pioneiro londrino Robert-William Paul. Foi um sucesso público, esta iniciativa do misterioso exibidor itinerante (húngaro ou americano, ninguém sabe) Edwin Rousby, «o electricista de Budapeste». Este, em Setembro, propicia nova sessão pública em Lisboa, agora com películas já filmadas no nosso País, pelo operador Harry Short, que Paul mandara para o sul da Europa à caça de imagens. A Cinemateca Portuguesa possui dois destes filmes: A Boca do Inferno e A Praia de Algés na Ocasião dos Banhos. Em Janeiro de 1897, Rousby parte definitivamente de Portugal, mas deixa em Lisboa a semente da cinefilia.

Depois deste flashback, para enquadramento histórico da aparição do Cinema («Animatógrafo», nas palavras de então) em Lisboa, vamos ao nosso pioneiro: Costa Veiga, após várias tentativas falhadas nesse sentido, conseguiu estabelecer-se como exibidor, inaugurando o Éden Concerto, aos Restauradores, e a Esplanada D. Luiz Filipe, em Cascais. Não tardou, no entanto, a dar o salto para a produção de filmes. Assim, aproveitando a estada sazonal do Rei D. Carlos em Cascais, no Verão de 1899, filma a Pessoa Real na praia, capta mais algumas vistas da então famosa estância balnear, e, finalmente, apresenta a sua primeira película: Aspectos da Praia de Cascais.

Foi o início de uma carreira de grande actividade como documentarista (palavra e conceito inexistentes à época, mas é disso que se trata), que atravessará toda a primeira década do século XX, registando os principais acontecimentos sociais e políticos, com a sua câmara inglesa Urban.

As vindas a Portugal de Chefes de Estado, e outras altas figuras, não lhe escaparam; e, temos, assim, a Série — interessante e fundamental para a compreensão da História da Europa — «Visitas a Lisboa»: Eduardo VII (1903), Afonso XIII (1903), Duques de Connaught (1903) Imperador da Alemanha Guilherme II (1905), Presidente de França Émile Loubet (1905), Rei de Saxe (1908).

Por este motivo, ficou conhecido por «Cineasta dos Reis», em oposição jocosa ao seu contemporâneo Aurélio da Paz dos Reis, «o Reis Cineasta», do Porto — primeiro português a dar à manivela uma câmara de filmar; e, revolucionário republicano, por sinal… Deste, falaremos noutro dia.

Entretanto, Costa Veiga fundou uma empresa produtora de Cinema — Portugal Filme —, continuando ainda a sua actividade profissional nos ramos da exibição e distribuição de fitas. Descobriu também, para o Cinema Português, Artur Costa de Macedo, que viria a ser um dos nossos melhores directores de fotografia, decisivo na Época de Ouro do Cinema Português (décadas de 1930 e 1940), e que trabalhava antes na garagem Auto-Palace, ao Rato.

Num tempo muito anterior ao advento da Televisão, era através do Cinema que os Estados comunicavam com os seus cidadãos e passavam para o exterior as imagens do País. Neste contexto, os filmes de Costa Veiga fizeram parte de uma grande e última ofensiva diplomática da Monarquia Portuguesa. A já referida Série «Visitas a Lisboa» foi distribuída por toda a Europa, com o apoio do Rei D. Carlos, mostrando Lisboa, como capital cosmopolita, acolhendo as principais figuras políticas do Mundo.

Note-se que os filmes, embora numa fase embrionária da Sétima Arte — em formato de curtas-metragens, a preto-e-branco, mudos —, eram um negócio rentável; e, Costa Veiga pôde enriquecer com a produção, distribuição e exibição de fitas, despertando, desta maneira, o apetite de muitos outros para esta indústria, os quais não tardaram a aparecer, em força, em Lisboa.

Sendo Costa Veiga «O Cineasta dos Reis», de facto, pode também dizer-se que a sua carreira sofre um grande abalo com o horrível Regicídio de 1 de Fevereiro de 1908 no Terreiro do Paço. Temos assim — simbolicamente — como uma das últimas obras do realizador: Os Funerais de S. M. El-Rei D. Carlos I e do Príncipe Real D. Luiz Filipe (1908).

Agora, em 2013, depois de passados 105 anos sobre o cobarde crime do Terreiro do Paço, não será a hora de se desenterrarem e exibirem os filmes do pioneiro lisboeta — do Cinema Nacional — Manuel Maria da Costa Veiga?

VERGONHA NACIONAL

Ontem, 1 de Fevereiro, decorreu a tomada de posse de sete novos Secretários-de-Estado, às 5 da tarde, no Palácio Belém.
Nesse mesmo dia, a essa mesma hora, não muito longe dali, no Terreiro do Paço, há 105 anos, era assassinado o Chefe de Estado de Portugal — Rei D. Carlos I.
Será falta de tacto do Protocolo de Estado ou será de propósito?

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

CARTEIRA DE SENHORA


DIA 53

Hoje estamos sintonizadas, a carteira e eu. Já vai aprendendo umas coisinhas. O dia 1 de Fevereiro só pode significar uma coisa para ambas: a data do ignóbil Regicídio. O dia em que mataram El-Rei e, não contentes com isso, também o Príncipe Real.

Mas está a ser tarefa difícil. Nunca antes tinha escrito sobre o Regicídio e convenhamos que não é agradável. Dispensava falar agora sobre a história do crime em si, antecedentes, conspirações e envolvimentos, embora tenha uma opinião bastante firmada sobre o assunto.

Queria antes falar do sentimento de perda que nos afecta pessoalmente sempre que há uma morte, mas que neste caso nos afecta a todos como Nação. Para muita gente, não só monárquicos, é a data mais triste da nossa História. Custa acreditar que haja quem consiga ficar completamente indiferente. É um sentimento de perda, quase de orfandade, que ainda hoje perdura. Relembramos El-Rei D. Carlos com saudade e lamentamos o desperdício destas duas vidas tão preciosas.

O Regicídio é tanto mais ignóbil quanto ninguém acredita que fosse um desejo do povo. Seria apenas o anseio de uns poucos, tão vis quanto o acto. Não foi um assassínio qualquer, uma obra de loucos. Sabiam o que faziam e foram directos à raiz da árvore, causando um golpe profundo. E era mesmo isso o pretendido, decepar a raiz. Para ir secando Portugal.

Com estas mortes, quiseram propositadamente cortar a ligação umbilical dos portugueses à Pátria e à história. Pois, porque um Rei é também a nossa História. O nosso garante perante interesses poderosos, o garante da nossa independência, da nossa identidade, da nossa cultura.

Quando assim se destrói o símbolo e a alma da Nação, da História, da perenidade, da independência, da identidade, o objectivo é claro. Queriam a rotura ambicionando o esquecimento. Mas não conseguiram, pois não? Se assim fosse não havia, 105 anos depois, tantos monárquicos neste país. Com diferentes ideias é certo, mas unidos no mesmo propósito.

O recurso à violência, no Regicídio, dois anos depois, no 5 de Outubro, e nos anos subsequentes, para impor um regime por que poucos pugnavam, não foi um bom princípio. Nunca seria, até por isso mesmo, e de nada adiantou. Em muitos casos até atrasou. O problema não estava no Rei ou no regime, mas no sistema. Ainda hoje.

Perdendo o ponto de referência e a rosa-dos-ventos, as consequências são previsíveis. Andamos às voltas, perdidos e acreditamos em tudo o que nos pareça indicar o caminho certo. Somos, e temos sido, sempre enganados.

Nunca mais foi o mesmo, Portugal. A falta que nos fez e faz o Rei… Sentimo-lo todos os dias.

Leonor Martins de Carvalho