Homilia na Missa de sufrágio por El-Rei D. Carlos I e o Príncipe Real
2. Cumprimentos. Todos os anos, no dia primeiro de Fevereiro, a Casa Real manda celebrar uma Santa Missa de sufrágio por Sua Majestade Fidelíssima El-Rei D. Carlos I, e por Sua Alteza Real o Príncipe Dom Luís Filipe, que em igual data do ano de 1908 tombaram, por Deus e pela Pátria, no Terreiro do Paço.
Quis a Providência que, tendo no ano passado assegurado este serviço litúrgico a pedido do Presidente da Real Associação de Lisboa, por impedimento do Senhor Cónego João Seabra, de novo o faça este ano, graças ao mesmo amável convite, que muito me honra. Por isso, cumpre-me agradecer a fidalga hospitalidade do meu Pároco e titular desta belíssima Igreja de Nossa Senhora da Encarnação, bem como oportunidade que se me dá de me associar a tão justa homenagem às vítimas do regicídio. É para mim especialmente grata a ocasião que assim se me oferece de servir a Família Real, que cumprimento nas reais pessoas do Senhor Dom Duarte e da Senhora Dona Isabel, Duques de Bragança, pedindo-lhes que aceitem os meus respeitos pela Instituição que encarnam, na comunhão dos ideais cristãos que professam com exemplar fidelidade. Peço ainda que contem sempre com o modesto óbolo da minha oração, que os não esquece nunca, nem a seus filhos, Suas Altezas o Príncipe da Beira e os Infantes de Portugal.
Consta-me também a presença de representantes oficiais das Reais Ordens dinásticas de Santa Isabel e de Nossa Senhora da Conceição da Vila Viçosa, bem como da Ordem Soberana e Militar de São João de Jerusalém, dita de Malta, e da Ordem de Cavalaria do Santo Sepulcro de Jerusalém: a todos saúdo, bem como aos presidentes de outras instituições que também se quiseram associar a esta efeméride, nomeadamente a Causa Real, o Instituto da Nobreza Portuguesa, a Associação da Nobreza Histórica de Portugal e a Juventude Monárquica. Envolvo na mesma bênção todos os numerosos fiéis que devotamente se propõem igualmente participar nesta Eucaristia e quantos, embora fisicamente ausentes, nos acompanham com as suas orações.
3. O sentido da celebração. Importa recordar que esta comemoração, mais do que um acto de afirmação monárquica ou de fervor patriótico, assume-se essencialmente como acção litúrgica, ou seja, como um acto de adoração, de súplica, de acção de graças e de desagravo a Deus Uno e Trino. Por isso, se a comum nacionalidade e a idêntica filiação monárquica une todos os fiéis hoje aqui reunidos, necessário é que, por maioria de razão, todos comunguem a mesma fé, sem a qual não faria sentido esta evocação religiosa.
Uma tal atitude cristã deve-se traduzir não apenas pela fervorosa oração por El-Rei D. Carlos e pelo Príncipe Real, mas também pelos seus assassinos, uma vez que é timbre dos discípulos de Cristo, em contraposição aos seguidores de outras religiões, o mandamento novo da caridade (cfr. Jo 13, 34-35), que obriga ao amor dos inimigos (cfr. Mt 5, 43-48). E, porque a Igreja é, pela sua própria natureza, católica, ou seja, universal, esta nossa prece não se limita apenas àqueles protagonistas da tragédia que antecedeu e propiciou, há mais de um século, a implantação da república portuguesa, antes abarca todos os heróis da nossa Pátria e da nossa fé, e também todas as vítimas inocentes da intolerância e do fanatismo, bem como todos os criminosos e homicidas, na esperança de que a misericórdia divina os perdoe e acolha, com a mesma espantosa magnanimidade que experimentou, no momento da sua morte, o bom ladrão (cfr. Lc 23, 39-43).
4. A dimensão íntima de um drama nacional. Já depois de curada a hemorroíssa que, com a sua extemporânea intervenção, atrasou Nosso Senhor no seu caminho para casa de Jairo, «vieram dizer da casa do chefe da sinagoga: “A tua filha morreu. Porque estás ainda a importunar o Mestre?” Mas Jesus, ouvindo estas palavras, disse ao chefe da sinagoga: “ Não temas; basta que tenhas fé”» (Mc 5, 35).
Impressiona a frieza como é comunicada ao desconsolado pai a morte da sua filha de doze anos: os próprios amigos, que lhe transmitem a dolorosa notícia do óbito, censuram a sua insistência junto do Mestre, única esperança para o seu amargurado coração paterno. O que para alguns mais não é do que um acontecimento brutal é, para os seus mais próximos familiares, causa de um imenso desgosto. Neste sentido, a dimensão nacional ou política do regicídio, de tão funestas consequências para a História de Portugal, não deve levar a esquecer a dimensão mais propriamente familiar do terrível drama que, com aquele duplo crime, se abateu sobre a nossa Família Real.
Numas Notas absolutamente íntimas sobre aquele trágico acontecimento, El-Rei D. Manuel II conta que sua augusta Mãe, logo que saiu da carruagem em que jazia El-Rei D. Carlos e agonizava o Príncipe D. Luís Filipe, gritou «com uma voz que fazia medo: “Mataram El-Rei! Mataram o meu Filho!”» (D. Manuel II, Notas absolutamente íntimas, 21-5-1918, cit. in Miguel Sanches de Baena, Diário de D. Manuel e estudo sobre o regicídio, Alfa, Lisboa 1990, pág. 51). Não há palavras que possam traduzir a dor daquele duplo luto de quem acabara de presenciar, indefesa, ao assassínio do marido e do seu filho primogénito. Ferida por uma tão grande mágoa, a Rainha subitamente desfaleceu, caindo no chão, mas logo se ergueu, «quase envergonhada por ter caído» (Idem, págs. 52-53), segundo o relato do seu filho sobrevivente, então já, de facto, Rei de Portugal, que depois afirma: «Quem dera a muitos homens terem a décima parte da coragem que minha Mãe tem. Tem sido uma verdadeira mártir!» (Idem, pág. 53). Entretanto, chegou a Rainha Dona Maria Pia que, dirigindo-se à Senhora Dona Amélia, disse: «Mataram o meu filho!». A que a Rainha respondeu: «E o meu também!» (Idem, pág. 52).
Talvez aos políticos interesse, sobretudo, a situação política decorrente do regicídio, no complexo estudo das suas causas e efeitos nacionais e internacionais. Talvez os historiadores se ocupem do facto, no âmbito mais alargado da evolução colectiva deste povo que, não obstante os seus momentos gloriosos, conhece também páginas manchadas pelo sangue dos mártires da Pátria, como certamente foram El-Rei D. Carlos e o Príncipe Real. Talvez os juristas se interessem sobretudo pela decorrente questão penal e ajuízem a responsabilidade criminal dos executores do acto e das associações secretas que agiram por seu intermédio. Talvez o público se satisfaça com a notícia alarmista, o escândalo mediático, o relato mais impressivo e chocante do tão sensacional acontecimento mas, uma vez ultrapassada a sua palpitante actualidade, logo cai no ingrato esquecimento da grei, que arrasta consigo, como foi o caso, a total impunidade dos seus responsáveis.
Se o regicídio foi uma tragédia nacional, foi também e principalmente um drama familiar. Se nenhum bom português pode ser alheio a esta convulsão política e social, nenhum cristão pode ficar indiferente ante a tragédia que o regicídio representou para a Família Real que, por ser a primeira da nação e a que melhor encarna a nossa memória e identidade, é também, de algum modo, a família de todos nós.
5. Deus é família. Segundo São Marcos, «depois de Jesus ter atravessado de barco para a outra margem do lago» (Mc 5, 21), chegou «um dos chefes da sinagoga, chamado Jairo. Ao ver Jesus, caiu a seus pés e suplicou-Lhe com insistência: “A minha filha está a morrer. Vem impor-Lhe as mãos, para que se salve e viva”» (Mc 5, 22-23).
Era chefe da sinagoga, mas não se vale da sua autoridade, nem do correspondente prestígio, para alcançar a graça da cura, que impetra humildemente na sua qualidade de pai, para a filha moribunda. Esquece-se da compostura que porventura seria de esperar de alguém com a sua posição social e cai aos pés de Jesus, num acto de tão profundo abatimento que Nosso Senhor «foi com ele» (Mc 5, 24), como que compelido pelo seu amor paterno e fazendo seu o sofrimento de Jairo.
Muito antes da encarnação do Verbo, Deus já se tinha revelado ao seu povo, sobretudo através dos patriarcas e dos profetas. Os judeus, ao contrário dos outros povos, conheciam Yahvé e acreditavam na sua existência e nos seus atributos. Mas a revelação de Deus não ia além da percepção da sua infinita majestade, da omnipotência da sua realeza, da sua condição única e singular de Senhor de todo o universo. Será preciso que se cumpra, em Nosso Senhor Jesus Cristo, «a plenitude dos tempos» (Gal 4, 4), para que o Deus uno três vezes santo se revele na sua intimidade, ou seja, como Pai, Filho e Espírito Santo. A referência a uma paternidade e filiação no seio da própria vida trinitária, bem como a revelação do amor, como essência da natureza que Deus é (cfr 1Jo 4, 8), expressam uma realidade surpreendente: Deus, que é amor na unidade da sua essência, é família na pluralidade das suas Pessoas.
Há ainda quem pense que Deus é uma espécie de Gigante Egoísta (cfr Oscar Wilde, O Gigante Egoísta, in Obra completa, Ed. José Aguilar Ltda., Rio de Janeiro 1961, págs. 244-247), que observa, impávido e sereno, as alegrias e os sofrimentos das criaturas, como se mais não fossem do que uma sua sádica distracção. Mas a fé cristã ensina, pelo contrário, que Deus é Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo e nosso, pela infusão do amor do Espírito Santo nos nossos corações. Por isso, não somos apenas criaturas feitas à imagem e semelhança de Deus, mas seus filhos caríssimos, na medida em que, pela graça, nos foi dada a participar a natureza divina (cfr 2Pd 1, 4).
Ciente desta tão gozosa e deslumbrante realidade, São Paulo cantava a grandeza desta nossa filiação divina: «tenho por certo que os sofrimentos do tempo presente não têm proporção com a glória que se manifestará em nós. Pelo que este mundo espera ansiosamente a manifestação dos filhos de Deus. De facto, a criação foi sujeita à vaidade […] com a esperança de que também a própria criação será livre da sujeição à corrupção, para participar da liberdade gloriosa dos filhos de Deus» (Rm 8, 18-21). E São Pedro concluía que os cristãos, por obra e graça do Baptismo, são «uma geração escolhida, um sacerdócio real, uma nação santa, um povo adquirido por Deus» (1Pd 2, 9).
6. Deus, família e monarquia. Se Deus é família e as instituições do Estado devem de algum modo reproduzir, na sociedade civil, a estrutura dessa relação das criaturas com o seu Criador, não será descabido, do ponto de vista teológico, concluir a conveniência de uma chefia do Estado que, como Deus, seja familiar. Neste sentido, sem querer dogmatizar em temas políticos opináveis, nem excluir outras formas legítimas de organização social, pode-se afirmar que a monarquia, na medida em que outorga a chefia e representação do Estado a uma família, mais do que a um indivíduo, é a forma política que mais se aproxima da realidade divina revelada no mistério da Santíssima Trindade e a que melhor corresponde e mais convém à preservação da célula fundamental da sociedade. Se a família natural, nas relações que estabelece entre pais e filhos, é imagem e semelhança da filiação divina, pela participação que aos pais cabe da própria paternidade de Deus (cfr Ef 3, 15), então um sistema de chefia do Estado que respeite e consagre esta realidade familiar é o que mais naturalmente se adequa à natureza social do ser humano e melhor expressa, na autoridade do poder público soberano, a imagem familiar de Deus.
Neste sentido, talvez não seja temerário afirmar que a razão teológica da instituição monárquica se encontra na revelação trinitária do mistério de Deus, ou seja, na sua estrutura familiar. Para além deste fundamento transcendente ou sobrenatural, que eventualmente não colhe para quem não professa a religião cristã, pode-se também afirmar que a instituição monárquica, pela sua natureza profundamente familiar, tem um carácter essencialmente natural, porque institui, na cúpula da organização política, o modelo familiar, que é a base antropológica de qualquer organização social.
Esta conaturalidade do regime monárquico, devida à sua estrutura essencialmente familiar, manifesta-se de muito modos, mas sobretudo na proximidade da nação em relação à Família Real. Não em vão, o Chefe da Casa Real francesa e a sua geração recebe um significativo nome: a Família de França. É assim porque os Reis e os seus descendentes são, de algum modo, a expressão mais representativa da soberania, não apenas na sua actualidade, mas também na sua origem e evolução. Se a pátria é, etimologicamente, a «terra dos pais», não pode ser simbolizada senão através da família que estabelece a relação histórica com os fundadores da nacionalidade, até porque um representante eleito por sufrágio é sempre um homem de facção, que tende a beneficiar os seus próprios eleitores contra os restantes cidadãos, não se identificando nunca, por conseguinte, com todos os seus compatriotas.
Com efeito, a concepção republicana da chefia do Estado é individualista, porque conta única e exclusivamente com a pessoa eleita e investida nessas funções, enquanto a concepção monárquica é familiar, porque não assenta apenas na pessoa do soberano, mas em toda a sua família, que participa nas suas funções e, por isso, está também ao serviço da comunidade nacional.
7. A responsabilidade moral da Família Real. Se a participação, pela Família Real, das funções de chefia e representação do Estado, a fazem credora de uma especial consideração política e social, também acrescem a sua responsabilidade social. Aos Reis e Príncipes deve-se-lhes prestar a honra que lhes é devida, mas na condição de que, pelo seu próprio comportamento, se afirmem dignos dessa homenagem. Se, como se costuma dizer, à mulher de César não lhe basta ser honesta, porque deve também parecê-lo, com mais razão se pode e deve exigir aos membros de uma Família Real aquela exemplaridade ética que é razão da sua proeminência. A distinção entre a vida pública e privada não faz sentido quando referida às pessoas reais, porque essa sua condição significa que toda a sua existência deve estar ao serviço da nação e, portanto, vivida de forma moralmente exemplar.
A este propósito, é significativa a actuação de João Baptista, que publicamente reprovou ao Rei Herodes a sua vida dissoluta (cf. Mt 14, 1-12). Fê-lo, certamente, porque o seu comportamento era escandaloso para qualquer judeu, mas também porque, enquanto monarca, estava obrigado a ser uma referência para o seu povo e, por isso, o seu pecado era maior. É verdade que a sua falta dizia respeito à sua intimidade, mas um rei digno desse nome não se pode permitir baixezas contrária à alteza da sua condição, a qual implica uma constante virtude, que seja lição e orgulho para todos os seus súbditos.
8. Homenagem às Rainhas de Portugal. Ainda a este propósito, permita-se-me uma breve alusão ao papel fundamental desempenhado pelas Rainhas de Portugal, sobretudo como exemplo de fidelidade matrimonial e de dedicação maternal. Outros exaltarão as suas virtudes patrióticas, bem como as suas obras de benemerência, mas não é menos digna de menção a sua tantas vezes heróica dedicação à família, quer na fidelidade aos seus compromissos matrimoniais, tanto mais meritória quanto nem sempre os casamentos régios se realizavam por iniciativa dos nubentes, quer ainda na instrução, com o seu exemplo e a sua palavra, de ínclitas gerações de Infantes de Portugal.
Embora não atingidas pelos disparos dos regicidas, as Rainhas Dona Maria Pia e Dona Amélia foram, ainda que incólumes, umas das principais vítimas do regicídio. Ambas Rainhas sofreram, respectivamente, a morte de filhos seus, tendo a Senhora Dona Maria Pia perdido também um seu neto e a Senhora Dona Amélia, seu augusto marido.
Dois significativos gestos atestam o heroísmo maternal destas duas últimas Rainhas, que o regicídio irmanou na mesma saudade e dor.
Quando, a 2 de Outubro de 1873, a Senhora Dona Maria Pia passeava, no sítio do Mexilhoeiro, com os seus filhos, uma onda arrebatou o Príncipe Dom Carlos, então com dez anos, e o seu irmão, o Infante Dom Afonso. Sem se deixar intimidar pela fúria da maré, a Rainha atirou-se de imediato à água, para salvar os seus filhos, pondo também em risco a sua própria vida. Os três vieram a ser salvos pelo ajudante do faroleiro da Guia, que foi por este motivo condecorado com a Torre-e-Espada, tendo sido também atribuída uma medalha à Senhora Dona Maria Pia. A coragem deste seu gesto foi a razão que levou à projecção de um monumento em seu louvor, muito significativamente denominado Afeição de Mãe. A estátua não chegou a ser erguida, mas o seu modelo, em barro, ainda se conserva no Palácio Real da Ajuda (Rui Ramos, D. Carlos, Círculo de Leitores, Rio de Mouro 2006, pág. 32).
Por sua vez, a atitude da Senhora Dona Amélia, por ocasião do regicídio, não poderia ter sido mais valerosa. Ante o estrondo dos disparos, que irromperam, segundo o relato de D. Manuel II, «como numa batida às feras», «uma perfeita fuzilada» (D. Manuel II, Notas absolutamente íntimas, 21-5-1918, cit., pág. 49), a Rainha não só não se amedrontou – como a grande maioria dos presentes, que, apavorados, fugiram à desfilada – como se pôs de pé na carruagem, dando assim o corpo ao manifesto. Quereria, decerto, defender os seus, nem que fosse a troco da sua própria vida. Ficou para a História a sua reacção patética, bramindo o ramo de flores que, no cais, momentos antes, lhe tinha sido oferecido por uma sua afilhada, ao mesmo tempo que gritava: «Infames, infames!» (Rui Ramos, D. Carlos, Círculo de Leitores, Rio de Mouro 2006, pág. 316). A infâmia dos que traiçoeiramente abateram, pelas costas, El-Rei, foi o pedestal de que a Providência se serviu para elevar este imperecível monumento ao heroísmo desta Rainha de Portugal, esposa e mãe mártir (D. Manuel II, Notas absolutamente íntimas, 21-5-1918, cit., pág. 53).
No esteio das suas augustas antecessoras, e em especial destas duas últimas Rainhas de Portugal, a Senhora Dona Isabel tem sido um extraordinário exemplo de virtude cristã, prestando deste jeito um inestimável serviço à Instituição e a Portugal. Bem haja, Alteza Real, por este vosso eficacíssimo apostolado que, não obstante a sua silenciosa descrição, é sonoro pregão dos ideais cristãos! Aceitai a nossa homenagem pela vossa fidelidade aos valores espirituais que, desde a sua fundação, nortearam este Reino que é de Maria e que é vosso e que, juntamente com o Senhor Dom Duarte, tão dignamente representais. Queira Deus que todos quanto se revêem neste mesmo ideário se comprometam, de acordo com o exemplo de Vossas Altezas Reais, a honrar os seus compromissos cristãos e familiares, na certeza de que, deste modo, não só prestam um valioso serviço à pátria e à Casa Real, como contribuem principalmente para a construção do Reino de Deus.
9. Cumprir Portugal. Uma curiosa coincidência numérica une os dois episódios evangélicos agora considerados: não só a hemorroíssa padecia há doze anos a doença de que foi pelo Senhor milagrosamente curada (cfr Mc 5, 25), como doze eram também os anos da jovem filha de Jairo, que Jesus ressuscitou (cfr Mc 5, 42). É provável que esse tempo signifique, no primeiro caso, uma doença tão persistente que seria, em termos humanos, incurável. Em relação à adolescente, os seus breves doze anos reforçam a tristeza provocada pelo seu inesperado óbito, porventura mais tolerável se a idade fosse provecta.
Não exagerarei se comparar o nosso país àquela doente «que tinha um fluxo de sangue havia doze anos, que sofrera muito nas mãos de vários médicos e gastara todos os seus bens, sem ter obtido qualquer resultado, antes piorava cada vez mais» (Mc 5, 25-26). O nosso Estado padece uma imparável hemorragia de mundos e fundos, que conduziu o nosso país a uma quase inimaginável situação de endividamento e de pobreza. Os recorrentes sacrifícios que são pedidos à população, não só não produzem frutos de um maior bem-estar social, como parecem contribuir para o agravamento diário da já agonizante situação. Os muitos «médicos» que se abeiraram da Pátria moribunda, sempre com juras de prodigiosas receitas, em nada contribuíram para a desejada e prometida cura e, com os seus generosos honorários, agravaram ainda mais o seu empobrecimento.
Mesmo as instituições que pareciam o mais sólido fundamento da sociedade – como a justiça, a saúde e a educação – soçobram nas mãos de mercenários aventureiros que, esquecido o ideal do bem comum e o princípio de serviço que deveria inspirar todos os governantes e funcionários do Estado, oferecem hoje um deplorável espectáculo de incrível amadorismo e da mais aflitiva e impune irresponsabilidade.
Sem saúde, sem receitas, sem recursos que bastem para a nossa digna sustentação, sem hipóteses de saldar a gigantesca dívida pública e sem políticos capazes de gizarem uma solução nacional, só nos cabem duas possíveis reacções: o desespero dos incrédulos, ou a esperança da fé.
Quando a Polónia cristã padecia o jugo comunista, um prelado, tendo em conta que o seu país se encontrava cercado, em todas as suas fronteiras, por nações satélites da então poderosa União Soviética, assim se dirigiu aos fiéis:
- Já que não nos podemos voltar para norte, nem para sul, para oeste, nem para leste, dirijamo-nos para a única direcção que nos resta: para cima, para o alto, para o Céu!
Quando Jesus disse que a filha de Jairo não estava morta, mas apenas adormecida, «riram-se d’Ele» (Mc 5, 40). Adivinho esse mesmo esgar trocista nos que agora pensam que Portugal é morto e enterrado e, por isso, descrêem esta palavra final de alento. Que seja. Mas peço o arrojo da esperança aos filhos desta bendita terra de Santa Maria, para que, como os nossos antepassados em 1385 e em 1640, também agora perseverem na ousadia da fé. Elevai pois, de novo, o estandarte das quinas e fazei vida da vossa vida a oração do poeta: «Senhor, falta cumprir-se Portugal!» (Fernando Pessoa, O Infante, último verso, in Mensagem, Edição clonada do original da Biblioteca Nacional, Guimarães Editores, 2009, pág. 61).
Padre Gonçalo Portocarrero de Almada